Tangerinas em um prato azul - crônica de marcos samuel costa

 

Vincent Van Gogh

 

Nos últimos tempos, ando refletindo muito sobre vestígios, termo técnico das ciências humanas, mas que aqui quero ler a partir de uma noção poética, pois passei a nutrir uma certa paixão, quase boba e sem fins maiores, pela Arqueologia.

Nos longos e exaustivos dias de estudos, leituras (para a produção de uma etnografia), tarefas, quotidiano de viagens, que faço para assistir às aulas na universidade em Belém, penso nos vestígios que cercam nossas vidas.

O que, juntando, vai se tornando memórias, lembrança e até mesmo trauma. Penso, um dia, em escrever muitas memórias, ser um memorialista ou, quem sabe, apenas continuar juntando memória e ficção, como quem junta conchas na praia, com quem cataloga trivialidades.

Quando se escreve um texto, é tão bom mentir; nisso mora o prazer de escrever ficção. Ou, quem sabe, construir verdades e opiniões particulares, sem ter a verdade como fonte, a comprovação científica como embasamento.

No entanto, me ganha ainda a cor das tangerinas no prato azul em cima da mesa, que, durante a semana toda, vai mudando sua coloração e deixando um cheiro bom no ar. Mudam seus aromas e sabores.

Gosto muito de rotinas, gosto de criar raízes, acabo gostando demais do lugar em que passo a viver. Tenho dificuldade com mudanças. Talvez seja pela educação que tive; meus pais não gostavam dos seus filhos na casa dos outros. Durante minha infância, houve uma única vez em que dormi na casa de minha avó. Sempre tivemos essa ligação profunda com nossa casa, com nossos quartos e uns com os outros.

Quando me mudei pela primeira vez de casa — e, ainda por cima, para morar sozinho — foi um sofrimento imenso. Sentia falta de absolutamente tudo. Rompi o tal falado "segundo cordão umbilical", tão sentimental e afetuoso quanto o primeiro. E tudo isso vai se tornando vestígios que escavo e documento.

Escrever sobre lembranças vai aprofundando os nós para dentro de nós mesmos. Gosto quando meus amigos vão lendo meus livros e me dizem: “Talvez tal cena os tenha lembrado de tal situação”. Neste sábado, um amigo disse: “Esse teu livro novo, Os Abismos, lembra muito tudo que vivemos em 2018.” Fiquei calado. Não gosto de confirmar. Mesmo que tenha nascido da memória, agora já se tornou ficção.

Todos os dias vou me esforçando para lembrar como minha mãe fazia o café — em parte tentando fazer igual (coisa que sei que não vai acontecer), em parte para tê-la perto de mim nesse primeiro ato da manhã. O esforço de vencer o esquecimento é doloroso. Escrever, muitas vezes, também é. Mas gosto de escrever e lembrar. Assim, sondo os vestígios arqueológicos da particularidade e do impossível.

Antes de abrir o armário e pegar essa xícara sem pires e tomar meu café-imitação, deixo que se mova esse rio de tristeza e angústia que envolve meus olhos. Rememorar também é doloroso, alerto. Choro, pois chorar é importante.



Marcos Samuel Costa nasceu em Ponta de Pedras/Marajó/Pará. É de origem ribeirinha. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e 2023. Venceu o Prêmio Dalcidio Jurandir 2019 e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2024. Livros publicados: Dentro de um peixe (Romance, ed. Folheando 2019), O cheiro dos homens (IOEPA 2021), No próximo Verão (poemas, ed. Folheando, 2021), Os abismos (poemas, ed. Folheando, 2022), Os desertos (poemas, ed. Folheando, 2023), Os vulcões (poemas, ed. Folheando, 2024), Sol forte na pele (contos, ed. Folheando, 2023) e Óculos escuros (contos, ed. M.inimalismo, 2024). Além disso, mantém o podcast “Paisagens”. Faz parte da antologia "Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI" com organização de Ricardo Domeneck (ed. Ercolano, 2025).

 

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