minha biblioteca - crônica de marcos samuel costa

 




Minha biblioteca

 

 

Terminei a leitura de Encaixotando minha biblioteca, do argentino Alberto Manguel. Uma obra que narra a experiência muito pessoal de Manguel, em que ele precisa encaixotar sua biblioteca, com cerca de vinte mil livros. Relata como cada livro guarda ou passa a ter uma biografia própria, muito pessoal, quanto um objeto-coisa (pensando de maneira arqueológica e da cultura material).

Pois os livros trazem consigo nomes, datas, acontecimentos, memórias e lembranças de pessoas, suas relações que se estabeleceram ou se estabeleceram a partir deles - boas e não tão boas; livros roubados, empréstimos sem retorno, esquecidos, guardados e nunca lidos - uma grande roupagem em que a continuidade biográfica se afirma.

Além disso, pela manhã, estive arrumando meus próprios livros, montando uma nova estante. Isso me gerou bastante reflexão, ainda mais depois de ter lido sobre uma biblioteca comunitária em Ponta de Pedras, a partir de uma iniciativa comunitária. Fiquei pensando: o que leva alguém a ter tantos livros em casa? E o que leva outras pessoas, simplesmente, a abrir as portas de sua casa e criar uma biblioteca comunitária? Ambas as coisas me soam como fantasmas.

Tenho hoje cerca de três mil livros, boa parte na minha biblioteca particular em Ponta de Pedras e outra grande quantidade em Belém, em casa. E, como vivo em sebos — algo que vem se tornando terapêutico para mim —, esse número sempre está aumentando. Tenho lido muitos livros de poesia e poucos de prosa, apesar de gostar muito de narrativas.

Ao mesmo tempo em que acumular livros me causa certa sensação de vazio, me transporta para lugares de paz. Gosto de ir mexer nos meus livros à noite. Depois do jantar, quando o mundo é silêncio, começo os trabalhos, separo o que já li e o que quero ler, separo por gênero, sempre aos poucos, ao ponto de que esse trabalho e as noites sejam prazerosos.

Outrossim, estava me lembrando de que disse para um colega de trabalho: “Me assusta a ideia de ter dedos mexendo nos meus livros.” O que é uma meia-verdade. Sempre gostei de ver como as pessoas ficam admiradas com os meus livros em casa, mas não gosto de emprestar nenhum. É o medo de não retornarem. As pessoas os mudam de lugar, maculam o meu recanto sagrado. Mas tudo bem, os trabalhos e as noites me aguardam.

Sinto que ainda estou muito distante dessa compreensão quanto ao equilíbrio, de partilhar leituras e montar um acervo. Pois tenho os livros como fonte de tudo. Entendo sua importância como objeto que deve circular. No entanto, tão complexa quanto a compreensão de uma biblioteca comunitária é a busca pela compreensão da necessidade que temos, individualmente, de nossos livros.

Li mais de uma vez nas redes sociais que o prosador paraense Haroldo Maranhão vendeu para o Estado sua biblioteca com cerca de quarenta mil livros. E usou esse dinheiro para ir para Portugal, o que achei justo, mas parece que ele não passou bem de saúde e a viagem se tornou um transtorno.

Pois bem, li também que boa parte desses livros sumiu, e não se sabe muito bem onde ficou o restante. Uma coleção de uma vida, diante da morte, perde sua importância pessoal. O que é triste. O mesmo aconteceu recentemente com o acervo de um dos irmãos Campos, que estava na Casa das Rosas, em São Paulo; o acervo foi para um depósito.

Para alguns, infelizmente, os livros são apenas um peso — e coloque peso nisso. Nos sebos, sempre escuto uma piada: “Alguém importante morreu esses dias?” Ou seja, querem saber se algum acervo importante está circulando pelos sebos. Como aconteceu com o de João Cabral de Melo Neto, que a família vendeu com urgência para desocupar o apartamento. Não se pode perder tanto tempo com isso, alguns devem pensar.

Minha relação com as bibliotecas é antiga. Desde a infância, empresto livros na biblioteca municipal de Ponta de Pedras. Depois, passei a frequentar uma biblioteca que ficava anexa ao prédio da igreja católica. Minha mãe voltou a estudar na EJA, quando eu não tinha com quem ficar. Então, ia com ela para a escola à noite; ficava na biblioteca até ela sair da aula. Então, a terceira biblioteca da minha vida foi essa.

Ficava lá durante horas esperando minha mãe. Às vezes, fora a funcionária, eu era a única pessoa entre tantas palavras e seus silêncios.

Tudo começou com o desejo de buscar novas histórias, conhecer lendas, saber de coisas antigas. Depois, foi nascendo a paixão pela poesia. E havia algo mágico nos livros que me atraía — e continua atraindo. Um rompimento enorme. Quando viajava com meu pai para pescar no alto rio Arari, levava um livro para ler durante a viagem. Até que chegou a um ponto em que tudo o que eu fazia envolvia livros e leituras.

Hoje, pensando na paixão (e toda paixão tem seu egoísmo) por livros, justifico assim minha vontade, meu desejo de ter livros e mais livros na minha biblioteca particular, que raramente abro para outras pessoas. Dizer que são meus e tê-los sob meu teto tem sabor. Ao mesmo tempo que amo as bibliotecas públicas e comunitárias, meu ciúme pelos meus livros me faz um egoísta. E, caminhando num acervo com tantos livros, pergunto-me se estou tateando a escuridão ou iluminando meus pensamentos...




 Marcos Samuel Costa nasceu em Ponta de Pedras/Marajó/Pará. É de origem ribeirinha. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e 2023. Venceu o Prêmio Dalcidio Jurandir 2019 e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2024. Livros publicados: Dentro de um peixe (Romance, ed. Folheando 2019), O cheiro dos homens (IOEPA 2021), No próximo Verão (poemas, ed. Folheando, 2021), Os abismos (poemas, ed. Folheando, 2022), Os desertos (poemas, ed. Folheando, 2023), Os vulcões (poemas, ed. Folheando, 2024), Sol forte na pele (contos, ed. Folheando, 2023) e Óculos escuros (contos, ed. M.inimalismo, 2024). Além disso, mantém o podcast “Paisagens”. Faz parte da antologia "Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI" com organização de Ricardo Domeneck (ed. Ercolano, 2025).




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