Fragmentos de uma rediscussão sobre o amoroso - crônica de marcos samuel costa
Na
tevê, o café da manhã com Ana Maria Braga e o quadro “Arrumar um boy para o Gil
do Vigor”, por conta do horário, para algo que estava sendo transmitido em rede
nacional, fiquei surpreso. Estava na viagem de retorno para casa, Belém–Ponta
de Pedras, mas não me demorei vendo aquilo. No entanto, aquelas imagens me
tomaram, ficaram se efervescendo nos meus pensamentos.
Passei
o restante da viagem, por um acaso inclusive, lendo o famoso Fragmentos de um
Discurso Amoroso, de Roland Barthes, e um artigo acadêmico de Eli Carrias sobre
a Hilda: “O corpo erótico e a educação pelo sensível: ensaios de uma pesquisa
sobre Hilda Hilst”.
Tudo
naquela manhã era sobre o amoroso, sobre o desejo, sobre corpos e a educação
pelo sensível. Eli escreve muito bem; suas imagens no artigo nos roubam. Ali, o
trivial e o profundo, mas, acima de tudo, vidas e corpos em movimento, esse tão
caro e por muito tempo reprimido: o corpo erótico, a educação do sensível na
masculinidade homoafetiva.
Causou-me
estranhamento essa chamada e temática para o horário: arrumar um boy para o
Gil, o ex-BBB e hoje famoso da internet. Mas me concentrei na leitura de
Barthes para pensar esse marco temporal de tempo e possível “liberdade” do
desejo.
Barthes,
em seu livro, tão gostoso de ler, nos fornece referências profundas, dialogando
sobre as tantas maneiras de amar, não buscando uma gênese do amor ou apenas
emitir opinião sobre o assunto. Ao contrário, percebe bem o amor como um louvor
à vida. Sendo assim, todos nós temos sobre ele direito, sobre o amor, nessa
qualidade de amar o corpo amado/desejado, para além de barreiras ideológicas e
repressoras.
O
processo midiático de arrumar um boy para o Gil, em rede nacional e em horário
nobre, é bem mais um resultado das mídias e redes sociais que uma transformação
profunda do pensamento comum das pessoas. No entanto, não o recusamos como
ponte e meio para lutas e esperança de dias melhores.
Vivo
na iminência de adoção, estou prestes a completar quatro anos em uma união
homoafetiva, e eu e o Rafa pensamos em adotar um filho. Porém, meu receio ainda
é a homofobia, mas, dessa vez, sobre o corpo e a vida da criança adotada.
Muitos traumas ainda são vivos em meu corpo.
Lembro
que, desde a educação infantil, os coleguinhas já me batiam. Lembro uma vez em
que saí da aula, estava na minha bicicleta, e eles correram, bateram nas minhas
costas. Então parei e vi um tio, por parte de pai, a quem pedi ajuda, e ele
ficou calado. Aquilo me marcou. Estava sozinho e, sim, ainda iria apanhar
muito.
E,
naquele momento, não apanhei por ser menor; eu era uma criança “grande”.
Apanhei porque era mais delicado, mais quieto e, acima de tudo, diferente. Bem,
estamos vendo o tempo mudar as coisas. Todavia, ainda rondam os traumas e, como
bem sinalizou Freud, o trauma psíquico é um som de dor que não conseguimos
colocar para fora: torna-se um grito preso.
Logo,
muitos gritos ainda estão morando na minha garganta, que hoje parece um fosso.
Voltando
a Barthes, marcou-me uma parte em especial do seu livro, em que ele fala algo
como: entre milhares de corpos, amamos apenas um. Ou seja, amar é um percurso
natural entre nossos desejos e fantasias. Um corpo, semelhante ou diferente,
terá esse poder imagético, simbólico e surreal sobre o nosso.
Bom,
fiquei curioso para saber quem seria o Raimundo, o boy que Gil havia escolhido.
No entanto, para nossa surpresa mesmo, foi o grande beijo que os dois se
permitiram, logo de cara, ao vivo, na tevê brasileira, em horário nobre, às dez
horas da manhã, nesse país tão conservador.
A
senhora que viajava ao meu lado transpareceu um certo desconforto. E eu apenas
pensando: “Não é possível um beijo homoafetivo nesse horário, em rede
nacional...”.
Na
minha infância, as primeiras percepções que me chegaram sobre ser gay estavam
relacionadas ao pecado, inferno, sofrimento e devassidão. Na adolescência, a
coisa mudou um pouco: passou a se relacionar à morte, assassinato e suicídio.
Qualquer produção artística sobre esse tema ou temática – filmes, livros,
músicas – acabava em sofrimento.
Outrossim,
ainda na adolescência, um colega gay mais velho me disse algo que também se
petrificou, em tristeza, no meu corpo, algo como: “Os gays são como árvores
secas que não dão nenhum fruto”. Mas esquecemos que a flora oferece flores,
sombras, nutrientes e até mesmo reparo para as dores. Vejo-me como uma planta
bem vincada no chão, que floresce, que passa por todos os processos: dias mais
verdes, outros mais cinzas, e até mesmo perco as folhas.
Há
muitos anos, ainda adolescente, vi no YouTube um curta-metragem – não lembro o
nome – em que dois garotos se matavam, colocavam algemas nos braços e se
prendiam no fundo da piscina. Não tinha uma ideia clara de que dois homens
pudessem constituir família ou viver, a seu modo, a sexualidade. Ou que seria
possível encontrar a “normalidade” do existir.
E,
por muito tempo, foi nessa imagem que me firmei: a de que o amor homoafetivo
estava relacionado ao trágico, ao impossível.
Faço
parte dessa geração que tem dito, nas redes sociais e nos grupos de amigos,
sobre os adolescentes de hoje estarem tendo a oportunidade de perceber que a
vida é mais plural, e que há muitas possibilidades do/no viver; que muitas
portas foram abertas pela nossa geração, assim como tivemos portas abertas
pelas gerações que vieram antes de nós.
As
cenas, hoje, desse filme cotidiano de nossas vidas, vêm aos poucos mudando; nem
tudo é sobre morte. Temos vida na vida. A possibilidade de amar um corpo em
fúria e desejo, à luz do dia, clareando-se, ou no fim de tarde, quando o sol se
deita no horizonte.
Como bem escreveu Barthes: “As figuras se destacam conforme se possa reconhecer, no discurso que passa, algo que tenha sido lido, ouvido, vivenciado.”. Celebro o beijo natural em horário “nobre”. O beijo natural, o amor natural e os corpos que transitam em busca de liberdade. Gil nem deve ter ficado com aquele Raimundo, aposto.
Marcos Samuel Costa nasceu em Ponta de Pedras/Marajó/Pará. É de origem ribeirinha. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e 2023. Venceu o Prêmio Dalcidio Jurandir 2019 e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2024. Livros publicados: Dentro de um peixe (Romance, ed. Folheando 2019), O cheiro dos homens (IOEPA 2021), No próximo Verão (poemas, ed. Folheando, 2021), Os abismos (poemas, ed. Folheando, 2022), Os desertos (poemas, ed. Folheando, 2023), Os vulcões (poemas, ed. Folheando, 2024), Sol forte na pele (contos, ed. Folheando, 2023) e Óculos escuros (contos, ed. M.inimalismo, 2024). Além disso, mantém o podcast “Paisagens”. Faz parte da antologia "Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI" com organização de Ricardo Domeneck (ed. Ercolano, 2025).
Comentários
Postar um comentário