Segunda vida - crônica de Marcos Samuel Costa









       Tenho deixado as coisas partirem ultimamente. Por muito tempo, tentei as segurar - como se pudessem aprender o tempo numa ampulheta íntima - com medo de perder, perdi mais do que pensei. 

Perceber o desvanecimento daquela vida de quando meu pai e minha mãe ainda eram vivos foi me esgotado, me vi tento que abrir meus olhos e morar o que perdiam, numa complexa mescla de amor, saudade e dor. 

Tentei tanto segurar, com muita força, tudo como era antes. É impossível, todos nós sabemos. Mas só quando nos deparamos com tamanha ausência, encontramos desculpas e justificativas para tudo. Tentamos justificar nossas insistências, porém, não adiante, o tempo corre tanto dentro quanto fora do nosso frágil coração. Algumas negociações impossíveis, porém que assumem um papel de acalanto.

Quando morei numa quitinete, por volta de 2015, minúscula, nos altos de uma vila no Guamá, por não ter computador, escrevi à mão durante o ano inteiro. Escrevi crônicas num caderno. Algumas coisas digitei pelo celular mesmo e postei no Facebook. Por algum motivo, em algum momento, por pensar que aquilo me desagradava ou por simplesmente não ter julgado importante, joguei fora o caderno e perdi quase tudo (só se salvou o que ficou nas postagens do Facebook).

Sinto que tentar segurar tudo como uma certa esperança de permanência nos adoece. Ao mesmo tempo que deixar partir causa sofrimento. Nos ronda um medo de não ser o momento certo ou o melhor momento para julgar o que deve ficar ou partir. Porém, no fundo sabemos que não pertence a nós, pelo menos completamente, essa decisão.

As coisas por si só sabem partir, partem, abrem um buraco no tempo e nele criam sua viagem. Olhamos para a morte e ela continua esse mistério que nos aguarda, mas que ao mesmo tempo guarda as pessoas que tanto amamos e que se foram.

A Arqueologia fala sobre a segunda vida dos objetos e coisas, que não morrem, mas que passam a narrar tanto a sua história pretérita quanto a presente, quando nos deparamos com esses objetos-coisas no espaço que repousam, nos aguardando. 

Os sentimentos, não são objetos, logo, sua materialidade não é uma verdade. Ao contrário, as suas matérias são subjetivas, são como o som, aliás, muitas vezes são o som, penso na voz da minha mãe que se perdeu e que busco na minha memória, esse tom e esse afago, mas quanto mais sinto que se perde, mais sinto que estou perdendo essa luta contra o que se vai e tem que ir, para que possamos ter nossas próprias vidas.

Li algo da Mar Becker que dizia sobre a segunda vida das pessoas, que começa depois que elas morrem. Algo como a continuidade biográfica - como na Arqueologia - . Essa vida possível e impossível que se gesta apenas dentro de nós, mas que por outro lado, renascem e se propagam em nossos corpos e gestos, como acreditou Marcel Mauss. Uma pequena fresta de esperança da não morte, dos nossos mortos.

Talvez um gesto da minha mãe se faça presente no meu rosto, e que ele se reverbere no rosto da minha sobrinha, uma esperança. Além disso, o amor que sinto por ela também se desenha no que escrevo, uma biografia de continuidade, uma esperança contra a morte.

Seguro-me firme nisso também; gosto de pensar que é nas minhas memórias que meus pais podem viver melhor na minha vida. Mas também entendo que preciso viver a minha vida. Jogos perigosos. Digo isso também porque hoje senti medo de sair da casa em que moro, no bairro do Campinho, em Ponta de Pedras, que foi a casa onde morei com meus pais. Lá parece que fica permanentemente tudo e, ao mesmo tempo, nada.

Mas a casa também pede a continuidade da sua biografia, requer reformas, reparos ou até mesmo seu descanso, enquanto isso, me preparo para a mudança futura.

Digo em silêncio naquela imensa mesa de almoço: “preciso de companhia”; digo solitário na cama em que durmo: “que frio faz à noite”; digo, quando estou exausto depois da rotina de trabalho no CREAS, da rotina de trabalho em casa e da limpeza: “preciso me mudar para um espaço menor”. Mas tudo vai se perdendo, se espalhando com o vento, e a casa do Campinho parece ser meu mundo.


Marcos Samuel Costa

Belém-PA, 2023



Marcos Samuel Costa nasceu em Ponta de Pedras/Marajó/Pará. É de origem ribeirinha. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e 2023. Venceu o Prêmio Dalcidio Jurandir 2019 e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2024. Livros publicados: Dentro de um peixe (Romance, ed. Folheando 2019), O cheiro dos homens (IOEPA 2021), No próximo Verão (poemas, ed. Folheando, 2021), Os abismos (poemas, ed. Folheando, 2022), Os desertos (poemas, ed. Folheando, 2023), Os vulcões (poemas, ed. Folheando, 2024), Sol forte na pele (contos, ed. Folheando, 2023) e Óculos escuros (contos, ed. M.inimalismo, 2024). Além disso, mantém o podcast “Paisagens”. Faz parte da antologia "Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI" com organização de Ricardo Domeneck (ed. Ercolano, 2025).







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