Estações - poema de marcos samuel costa

 

(Egon Schiele)

Estações:

“E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça (...)” 

T.S. Eliot

 

neste mês de fevereiro.
comecei a escutar rádio
 
liguei um aparelho velho que
estava há tempos parado
 
no lugar da antena um fio elétrico
e palha-de-aço
 
pela manhã quando levanto
ligo o velho aparelho
 
sintonizo uma rádio cultural
 
e fico pensando quantas pessoas
ainda ouvem rádio, isso
 
fora os taxistas (que
também estão na eminencia de desaparecer),
fora os pescadores em alto-mar,
fora as pessoas solitárias
 
como não dirijo táxi e nem pesco
com frequência
estão me enquadro entre
os solitários que ainda
ouvem rádio
 
a casa de minha avó
era repleta de sonolência
e vozes vindas do rádio
era quase o único som daquela casa velha
 
nos verões que viaja com
meu pai para pescar no alto Rio Arari
e no grande Lago Arari
 
nosso único contato com o mundo
exterior era pelo que ouvíamos
da extinta Rádio Club do Pará
 
sintonizados com a vida “lá fora”
na rádio,
sabíamos que um prédio desmoronou
 
ou que um crime atordoava algumas pessoas
 
minha mãe ouvia as orações
todas as manhãs na rádio
colocava um copo com água em cima
do rádio para ser consagrada
 
e me fazia o beber
e eu sabia que ela imaginava
que aquilo traria a cura para a minha
homoafetividade
 
ela não falava nada, mas eu sabia,
os filhos sempre sabem
 
deve ser de família
a tristeza
 
deve ser de família
sintonizar as rádios
 
li em algum lugar que
existe fatores biológicos
na depressão
 
e me lembrei que desde criança
já sentia muitas dessas coisas que
 
hoje sinto e sei que
são partes da depressão
 
pelo menos é o que os médicos
dizem, descrevem como depressão
 
o gosto pelo rádio
é um sintoma da depressão
são erupções advindas
dos fatores genealógicos



Marcos Samuel Costa nasceu em Ponta de Pedras/Marajó/Pará. É de origem ribeirinha. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e 2023. Venceu o Prêmio Dalcidio Jurandir 2019 e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2024. Livros publicados: Dentro de um peixe (Romance, ed. Folheando 2019), O cheiro dos homens (IOEPA 2021), No próximo Verão (poemas, ed. Folheando, 2021), Os abismos (poemas, ed. Folheando, 2022), Os desertos (poemas, ed. Folheando, 2023), Os vulcões (poemas, ed. Folheando, 2024), Sol forte na pele (contos, ed. Folheando, 2023) e Óculos escuros (contos, ed. M.inimalismo, 2024). Além disso, mantém o podcast “Paisagens”. Faz parte da antologia "Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI" com organização de Ricardo Domeneck (ed. Ercolano, 2025).


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