Ferida aberta - conto de marcos samuel costa

 

(Egon Schiele)

Ferida aberta

O futuro é para quem tem sede

Dércio Braúna

                                                                                       

Quando uma ferida começa a coçar, é porque já está sarando. As feridas são diminutas, certas ilhas no corpo. Causam leves incômodos, porém sempre fazem de tudo para mostrar que estão presentes, vivas.

Lucas abre o portão para seu amigo. Caio entra fazendo barulho, falando alto. O portão da vila é pesado, requer força. Desmoronar o peso do metal. Resguardar os braços, o toque.

Ao adentrarem a casa, que é composta de silêncio e livros, sentam-se à mesa para fazer um lanche.

Lucas oferece biscoitos e iogurte para o Caio, mas Caio prefere comer frutas, pequenas uvas azedas. Tenta levar a sério a dieta que nem precisa, para seu corpo tão magro. Fim de tarde quente, o sol ainda clareava em tons laranjas a cidade.

Lucas fica calado, parece pensar em algo distante.

Caio lhe provoca, perguntando se algo estava acontecendo. Lucas então diz:

— Sabe, amigo, sinto que alguma coisa se esgotou, mas dessa vez, ao extremo. Não sei te explicar exatamente, mesmo sabendo a causa. Depois que conheci o Edu e que tudo aconteceu, da forma que aconteceu, dele ter me roubado, de ter levado ele em casa e apresentado ele como meu namorado... e do nada ele sumiu, não foi...?

Caio diz:

— Sim, depois ele sumiu e não deu nenhum sinal de vida. Isso realmente é estranho.

Lucas continua:

— Mas me apaixonei por ele, e acho que acabei me fazendo de cego para tudo. Ele mostrava evidências claras de que era dependente químico, mas eu não quis ver.

Caio diz:

— Não te cobres tanto, meu anjo. Como tu mesmo disseste, estavas apaixonado.

Caio continua dizendo:

— Eu sabia que toda essa tua tristeza tinha a ver com isso. Tu não falaste nada, mas eu já imaginava. Que tinhas ficado arrasado por dentro. Que a passagem desse rapaz na tua vida abriu uma ferida enorme.

Lucas se levanta, pega uma agenda, e diz:

— Amigo, eu consegui o novo endereço dele. Tenho um amigo que trabalha na polícia, e ele procurou o Edu, achou a ficha dele.

Caio:

— Então, até fichado na polícia o boy é?

Lucas:

— Sim, ele é fichado.

Caio, demonstrando alguma preocupação, pergunta:

— O que pensas em fazer agora que tens o endereço?

Lucas fica em silêncio. Tanta raiva subiu à cabeça, tanto rancor é acordado por dentro, que seu rosto fica vermelho. Caio percebe, mas continua em silêncio. Pensa consigo:

“Eu, no lugar dele, estaria assim, ou até pior. É horrível dar confiança para alguém e ser enganado. Muito mais, se roubado dessa maneira.”

Enfim, Lucas responde:

— Não sei, amigo, o que fazer. Mas preciso fazer alguma coisa. Me vingar? Não sei. Os geminianos não suportam continuar suas vidas sem alguma vingança. Mas te juro, se eu encontrasse com ele, daria um soco na cara dele. Ele foi mais profundo: me deixou levá-lo em casa, apresentar para minha família, dormiu no meu quarto, almoçou conosco no domingo, fizemos planos... Para no final, além de sumir, me roubar. Eu quero que ele morra.

Caio diz:

— Amigo, te conheço há tantos anos, nunca tinha te visto tão aborrecido com alguém assim.

 

***

 

As feridas demoram algum tempo no corpo. Têm suas fases. Vão se fechando, caminhando para o esquecimento. Mas não um esquecimento definitivo. A depender das suas proporções, deixarão sua marca no corpo.

Eduardo saiu cedo de sua casa. Estava evitando sair, ou, quando saía, usava boné e andava com a cabeça baixa. No último surto que teve, usou cocaína mais do que poderia pagar. Como já era conhecido pelos parceiros, o dono da boca o deixou levar e deixar na conta.

Ele precisava encontrar o pai para conseguir algum dinheiro. Estava recebendo ameaças o dia inteiro. Precisava urgentemente pagar as drogas que devia.

Na noite anterior, até poderia ter resolvido isso, mas acabou brigando com sua chefe no restaurante e foi demitido. Queria o valor que lhe era devido pelos dias trabalhados, mas dona Matilde o mandou retornar na outra semana, quando a folha tivesse fechado. Foi quando ele surtou outra vez e a encheu de ofensas. Lhe disse:

— Olha, dona Matilde, eu quero meu dinheiro agora, estou precisando, a senhora entendeu?

E, mais uma vez, ela explicou que, quando a folha fechasse, pagaria os dias trabalhados, que não poderia comprometer o caixa do restaurante e que se retirasse antes que as coisas piorassem.

Eduardo a ameaçava:

— Vão piorar para a senhora, caso não me pague agora — fixa nela um olhar cortante de ódio — eu saio daqui e vou denunciar essa sua cozinha irregular. Eu já trabalhei em outros restaurantes e sei muito bem do que estou falando.

Ela o manda ir embora. Estava cheia dele e sabia muito bem como lidar com essas situações.

Tonhão deu a ordem para seus moleques: encontrando o Edu, podiam apagar ele. Já era ciente de que ele não lhe pagaria e precisava, há dias, de alguma morte para usar de exemplo para os outros devedores. Eduardo estava na pior mesmo — justificou. Ninguém acredita nele, a família não aguenta o peso que ele é. Não fará falta alguma.

O pai era a última esperança, dois dias antes já tinha roubado o celular de Lucas no último encontro, vendeu por um preço baixo para poder deixar de imediato algum dinheiro na boca e se achava mais uma vez sem saída. Caminhava sob a noite que se iniciava, foi beirando o canal do Barreiro até a Ponte do Galo, cabeça baixa, com esperança de não ser reconhecido. Consigo pensava: “Se eu conseguir sair dessa, eu nunca mais uso drogas, eu procuro tratamento”.

Eduardo foi encontrado morto no Canal do Barreiro.


 Marcos Samuel Costa nasceu em 1994 em Ponta de Pedras/Marajó/Pará. É de origem ribeirinha. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e 2023. Venceu o Prêmio Dalcidio Jurandir 2019 e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2024. Livros publicados: Dentro de um peixe (Romance, ed. Folheando 2019), O cheiro dos homens (IOEPA 2021), No próximo Verão (poemas, ed. Folheando, 2021), Os abismos (poemas, ed. Folheando, 2022), Os desertos (poemas, ed. Folheando, 2023), Os vulcões (poemas, ed. Folheando, 2024), Sol forte na pele (contos, ed. Folheando, 2023) e Óculos escuros (contos, ed. M.inimalismo, 2024). Além disso, mantém o podcast “Paisagens”. Faz parte da antologia "Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI" com organização de Ricardo Domeneck (ed. Ercolano, 2025).

 

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