Uvas miúdas com sabor de noite - conto de marcos samuel costa

 
Crédito: SHUTTERSTOCK.COM

Uvas miúdas com sabor de noite 

 

Mateus tirou da geladeira um cacho de uvas miúdas, tão escuras e saborosas, deixavam na língua um misto de azedo e doce, na boca pareciam um estalo de prazer. Rápido. Mas intenso. Mateus não falou mais nada, comia com certa paciência enquanto as mãos grossas de Josué lhe tocavam compassadamente o corpo, como se procurasse outra espécie de prazer, como se procurasse sentir amor. Procurava o que deixou escapar. Ainda amava. Sol. Intenso caia com o fim do dia. Suas mãos, pareciam as mãos pesadas da dor. Mais do que antes.

Mateus estava no ônibus indo para casa de Josué. A tarde estava levemente quente e o trânsito agitado por conta do horário, ele já tinha passado o viaduto que divide Belém e Ananindeua quando pensou em descer. O banco da frente era ocupado por dois jovens que conversavam alto, que vez ou outra lhe tirava a atenção, olhou a hora no celular, talvez se descesse naquele exato momento não seria difícil chegar de volta em sua casa apesar da distância. Os dois jovens se levantaram, mas Mateus continuou sentado. Ele ficou pensando em tudo que se passou ao longo dos três anos de namoro, um vento atravessava pela janela do ônibus que com frequência dava arranques de aceleração, pensou quantas vezes se calou frente as traições, quantas vezes teve que saber lidar com as mudanças de humor quase doentio Josué.

Olhou tão fundo para dentro de si, como se procurasse a sua voz que ficou perdida entre essa coisa ou sentimento que ele não sabia nem se explicar, faltava poucas paradas para Mateus descer, não tinha como voltar, iria até o fim. A tarde se findava. Mas havia algo muito bom além do sexo e da companhia, viam as coisas de maneira parecidas, pensou como quem procura uma cura. A tarde não poderia lhe curar, mesmo com seus tantos tons de amarelo. O bairro Centro já estava perto, ficou num redemoinho de pensamentos. Restava a caminhada até a casa de Josué, três quadras da principal.

As vozes não se confundem, os sentimentos de perdem no redemoinho, Talvez eu tenha me enganado com tudo isso, talvez, aliás, não cabe mais dizer isso “talvez”, eu me enganei com o que eu sentia, ainda te amo e sinto isso cada vez mais forte, a distância tem me mostrado isso. Eu estava cego, eu estava louco por novos corpos, baixei o Grinder para ter sexo e outros corpos, mas no fim das contas, eu só procurava o teu corpo nos outros corpos, te procurava nos outros caras, Eu sei, Josué, eu sabia que estavas no Grinder, um amigo meu te viu lá, mas a questão não é nem exatamente isso, o que me marcou foi a forma que tu me deixou, tão abruptamente e sem motivos aparentes, um dia estávamos juntos e comemorávamos o Natal, no outro tu dizendo que precisavas conversa comigo, eu já imaginava, poderia sentir.

Minutos antes Mateus chegava na casa de Josué. Josué lhe esperava ansioso, estava com alguma coisa dentro de si perdendo o controlo, algo dentro de si estava preste a gritar. Sua mente caminhava sozinha na remoço e no medo. Queimava. Afogava. Mateus chegava como calma para tudo que estava agitado. Entro na casa do seu ex-namorado e quase pode perceber que os ventos agitados iam aos poucos se tornando brisas mais afetuosas, as águas iam se deitando no chão do quarto, Nem sei por que tu não foste encontrar comigo no shopping mesmo, era só tu me repassar o restante do dinheiro que faltava, Eu sei, mas queria que viesses aqui, queria conversar, mas deixa para depois, entra aqui comigo, estou morrendo de saudades de ti.

Josué o beija com muita intensidade. Desperto. Era um homem de dois metros de altura, pardo e muito forte, seu cabelo cortado num estilo militar lhe dava um tom de sério, mas era tão afetuoso quando Mateus estava em seus braços. As roupas iam caindo no chão como chuva, freneticamente, os corpos estavam despidos, o céu da boca era acessado pela língua. Mateus pede para ele se deitar na cama, Josué se deita, Mateus se aproxima e começa a chupar seu pau, o engole em garganta-profunda, o outro geme com muito prazer, e Mateus vai cada vez mais longe e levando seu amante junto, passa sua língua na cabeça do pau de Josué. Até que Josué o penetra com carinho que depois ia se tornando mais intenso, mais intenso, mais intenso e ele gritava, Esse cu é meu, esse cu é meu, esse cu é só meu. E Mateus gemia ainda mais alto.

Depois do banho, voltaram para cama, estavam ainda despidos, Eu quero voltar contigo, eu te amo ainda, ao contrário do que eu pensava, não é de outros caras que preciso, o que preciso é arrumar as coisas contigo, o que precisamos é reaver nossos erros e continuar. Mateus demorou para responder, ficou calado, e tanta coisa passou em sua mente. Uma montanha de sentimentos se sedimentava agora, teria tanta coisa para falar e não sabia por onde começava, até que disse, Tu me magoaste muito, me fez sofrer demais, chorei por muitos dias, foi desumano que tu fizeste, me deixou de uma hora para outro, não deu motivos, fez eu ter planos e sonhos, e simplesmente decidi que tua vida não poderia mais acompanhar a minha, desculpa te falar, tu foste um grande escroto, caralho, Desculpa, eu errei, não te disse o que estava me incomodado, não te disse as coisas que eu sentia, acabei me envolvendo num ciúme doentio por ti. Ficava pensando por que tu não andavas de mãos dadas comigo quando nós saiamos, comecei a pensar que poderias querer me esconder, depois eu pensei que precisava comer outros, sentir outros corpos e tudo isso complicou na minha cabeça. Pela primeira vez Mateus viu uma lagrima caído dos olhos de Josué. Tudo bem, eu ainda te amo, tu ainda me amas, podemos tentar mais uma vez.

Mas nunca é clara dissidência. Esse fio que rebenta. Desfaz. A onda que violentamente bate na areia da praia, faz lembrar muito bem, como é difícil romper, desfazer as figuras. Mateus se deitou novamente ao lado de Josué, depois do sexo, do banho, do retorno. A brisa da noite era calma. Rápido Josué também se acalmou, mas não pode se dizer que de fato era o retorno.

Passou mais uma semana e se viram apenas uma vez, Josué continuava se encontrando com Paulo. Um rapaz que conheceu há algum tempo e passaram a ter algum tipo de envolvimento. Paulo morava distante de Josué e assim ficava mais fácil para organizar os encontros e não ter possibilidades de seu namorado saber do que estava acontecendo. Geralmente se viam no shopping da Avenida Augusto Montenegro ou na própria universidade.

Paulo era mais novo, tinha apenas dezenove anos e estava ainda se assumido para sua família. A conversa com os pais fora poucos dias antes do Natal. Não pode se dizer que foi uma surpresa para os dois, porém, também não poderia se dizer que os pais não esperavam que as coisas pudessem ser diferentes e o filho ser, como os jovens de sua época, que apesar da inclinação para a homoafetividade, acabam ficando no armário. Não é necessário acabar a fugaz luz dos acontecimentos. O filho nunca se esforçou para esconder nada, apesar de ter aceitou entrar no boxe com o irmão mais velho e ter feito por alguns meses a escolinha de futebol do bairro, mas acabou no handebol e por lá ficou. O pai pensava que no fundo, o filho gostava de novidades, e não estava totalmente errado. Paulo se permitia conhecer. Ele sabia que Josué tinha namorado, mesmo assim, não apenas se envolveu como tinha esperança do rompimento.

Tinha marcado de se encontrar nas Docas no início da noite e de lá irem para algum motel de São Brás e passar a noite juntos. Paulo saiu mais cedo de casa pela distância. Chegou primeiro e ficou esperando Josué chegar. A baia estava calma e a noite já tinha descido, mas a presença do vento era forte. Batia no seu rosto e lhe aliviava o calor. Tirou da mochila o maço de cigarros e acendeu um. Ficou preocupado pois o amante não gostava que ele fumasse, mas a brisa da noite e a breve solidão era um convite, se afastou da área que estava com mais cheia e ficou numa ponta, próxima do cais. Da área aberta de um bar, vinha o som de uma música ao vivo, se olhasse nessa direção poderia vê-los tocar. Mas ficou olhando o rio que calmo lembrança um corpo morto.

Quando Josué chegou, o cigarro já tinha acabado e Paulo comido uma mente, lavado as mãos no banheiro e retocado o perfume. Mas havia o sinal do cigarro e prazer por seu corpo, mas estava leve. Seus olhos sempre foram um convite para Josué, por isso esse envolvimento, que ainda nem de longe poderia ser chamado de amor.

Vim a viagem toda pensando, disse Josué, rasgando a calma, é melhor rompermos, não posso mais continuar contigo, eu precisava falar isso e tinha que ser agora, não estamos fazendo bem um para o outro. Paulo fica em silêncio, ainda baixa a cabeça, o corpo morto do rio se transfere para ele, Tu já chegas assim, falando dessa maneira, me faz sair de casa para ter que ouvir isso, pensei que seria uma noite especial e quantas vezes tu já falaste em acabar e nunca acabamos, Mas agora é diferente, muito diferente, Mateus vai morar comigo, Como assim morar contigo, sem mais nem menos morar contigo, ficaste louco, não é possível, Conversamos muito e ele precisa ficar mais próximo do trabalho dele e já estamos bastante tempo juntos, achamos melhor, Sempre acreditei que iriamos ficar juntos, lutei por isso, Não venha com essa, tu sempre soubeste que não iriamos ficar juntos, sempre deixei isso claro, Não precisa me tratar dessa maneira, é melhor eu ir embora, para mim já está se tornando insuportável tudo isso, Calma, acho que ainda podemos passar a noite juntos, ser algo como uma despedida, Tu é grande idiota, o que te faz pensar que ainda quero dar para ti, não quero mais chegar perto de ti.

 

Paulo voltou para sua casa. Ao entrar, deparasse com o pai que estava tomando cerveja na cozinha e ouvindo música a som ambiente, a mãe havia deitado. Seu rosto estava sendo clareado pela luz forte da cozinha. Parecia feliz, só feliz. Caminhou até a geladeira e tirou uma cerveja, o pai não disse nada, sorriu, Cadê a mãe, pai, perguntou com uma latinha nas mãos, Acabou de subir, sabes como ela é, muito esponja, absorve tudo de uma vez e na segunda latinha já está bêbada, dormindo, bem que digo, bebi devagar Marta, mas tu sabes já não é, Sei, pai, mãe não sabe beber, mas pelo menos ela não ficou aqui cantando nela desafinação dela, E por onde tu andavas, filho, essa tua cara está péssima, Fui num encontro, pai, E como foi, Péssimo... se assim posso dizer, O que houve, Fui feito de trouxa novamente, o cara só me enganou, disse que deixaria o namorado e ficaria comigo, e hoje só me deu um chute na bunda, Mas tu és novo, ainda vais conhecer muitos caras, até encontrar um cara legal. Ah, e não podes acreditar nesse papo de eu-vou-deixar-a-pessoa e para ficar contigo, isso nunca dar certo, Tens razão, pai, mas essas coisas doem, Eu sei que dói – diz o pai, como se pudesse transformar água em vinho e oferece ao filho outra latinha de cerveja. A paixão dissipa em seu peito, como é necessário que seja, como rio, luz forte. Só depois ser leito, e depois luto.





Marcos Samuel Costa, é poeta e ficcionista, autor dos livros: No próximo verão (ed. Folheando, 2021), Os abismos (Ed. Folheando, 2021) e do romance Dentro de um peixe (
ed. Folheando, 2019) e do romance O cheiros dos homens (Prêmio Dalcidio Jurandir).

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