Leão desperto - conto de Marcos Samuel Costa

(Henry Scott)

 

Leão desperto


Fábio convidou Tiago para seu aniversário, seria numa casa de show na Doca. Mas Tiago se recusou, o amigo ficou um pouco chateado, mas respeitou, sabia que o amigo era evangélico. Então Tiago prometeu uma visita ao amigo no domingo à tarde. A festa de aniversário foi na sexta à noite, muitas bebidas, música e excitação. E no dia marcado Tiago foi, já depois das quatro da tarde. Chegou na casa do amigo e foi bem recebido. Na tarde um sol radiante se inclina no céu como se não quisesse que o dia terminasse, iluminando todos os sofrimentos, até os mais escondidos, até mesmo o que vivem no olvido de cada um. Tiago pegou o ônibus vazio e foi visitar o amigo, como se fosse num encontro. Estava bem arrumado, cabelo penteado e no pulso, um relógio pesava densamente, seu perfume era forte e emadeirado. Tiago por sua vez, estava com um short-de-ficar-em-casa, sem camisa. E pelo que parecia estava sozinho. Esperava o amigo para uma visita, e não mais qualquer comemoração ligada ao seu aniversário.

Fábio lembrava da conversa que teve com o amigo, algum tempo antes:

 – Mano, tu tens namorada? Nunca vi tu falar sobre isso – Tiago tentava ser o mais natural possível, olhando ora direto para o rosto do amigo, e depois distraindo seus olhos em qualquer coisa, com certa força e medo, depois de uma curta pausa retoma –, deves ter alguém. Os caras de hoje em dia não sabem ficar sozinho. Parecem que querem ter alguém mandando em suas vidas, nada contra – riu levemente. 

 – Não mano, não tenho. Tu tens, não é? – a voz trazia certa certeza, retomou – apesar de todos quererem ser mandados como tu falaste, eu não tenho ninguém. Com o tempo vais perceber que sou um pouco diferente, gosto das coisas diferentes, de forma diferente, melhor dizendo. 

 – Tenho sim mano. E já namoro há três anos, tem momentos que parece que esse namoro vai me matar, mas em outros até que é bom, são bons momentos, boa companhia. Eu namoro com a Bruna, uma moça da minha igreja. Gente boa pra caramba, só um pouco chata às vezes, fica muito no meu pé. Vive falando em casamento, mas sei lá – pensou um pouco e olhou de frente para o outro – nunca temos total certeza de nada. É difícil dizer que casar, por exemplo, é o melhor para nós. 

 – Que legal, cara, ela deve ser feliz estando contigo – disse enquanto seus olhos passavam por uma imagem vazia na memória, mas logo se arrependeu do que disso, como se tivesse mostrado algo que não deveria e tentou consertar – quero dizer, tu és um cara tranquilo, não vive nas festas, nem bebe, nem nada, acaba que deve ser bom, foi isso que quis dizer. O outro ouviu e lhe deu um sorriso sincero.

Ainda estava no corpo de Fábio resquícios de álcool. E uma porção muito grande de paixão. Jogaram um pouco de play. E num dos lances de futebol na tela, Tiago perguntou:

– Cadê seus pais? 

 – Todo mundo saiu, estou só em casa hoje. Foram para casa da minha avó no interior, mas devem voltar amanhã. Meu pai tá de folga esses dias. 

 – Você nunca me disse quem é essa tua namorada, ou a pessoa que tu gostas, não te vejo ficar com ninguém, mano. Acho que tu és até gay porra – disse brincando.

 – Eu sou gay, até que fim tu percebeste – disse rindo – me poupou de ter que falar – parou meio resoluto e voltou a falar – se bem que não há obrigação de se dizer nada, a gente é o que é e ponto.

 – Tu tens cada brincadeira porra – tentando não saber o que já sabia – mas a gente é o que é, e ponto, mas sei lá, na maioria das vezes também não somos bem o que de fato temos por dentro, nem sei se disse de maneira correta o que quero dizer. 

 – É sério, eu sou gay – disse com um tom amigável, mas extremamente sério. 

 – Tu tá falando sério, Fábio? 

 – Estou, sou gay, algum problema? Gosto de homem, mano? Normal né?

 – Normal não...

 – Como assim, não é normal? Me explica isso Tiago?

 – Ah, cara, deixa pra lá. Só fiquei confuso. Não esperava que tu fosse bicha. Mas pensando bem... faz bastante sentido agora, essa tua delicadeza com as coisas, essa tua paixão pelos teus trabalhos. – disse com um olhar de confuso, com medo de ter dito algo errado.

 – Bicha? Tanta coisa para tu me chamares, me chamas de bicha. Caramba, esperava alguma coisa melhor de ti, sério. 

 – Desculpa, não queria ter dito isso. Foi um pouco por impulso, eu sei que não é legal ficar usando esses termos, não é?

Então o silêncio. Que parecia ter ganhado força com a queda do sol no horizonte e o início da noite. A escuridão preenchia agora os sentidos. Um clima pesado desceu entre eles, a noite chegava em ventos amenos que adentravam a sala, com poucas luzes. Estavam jogados no sofá jogando Playstation.

 – Pausa aí, estou a fim de beber alguma coisa, queres?  – Disse Fábio sem demostra raiva na voz. 

  – Vamos, estou a fim também. 

 – Quer tomar o quer? Tem cerveja na geladeira e uma vodca no armário. Ah, esqueci que tu não bebes. Bom, a mamãe sempre faz suco tentando controlar o clima ruim de casa – riu alegre – mas tens que colocar álcool nesse suco – disse como se tentasse ajustar o que estava errado.

 – Sim, eu quero um drink – então olha nos olhos do outro, como se calmamente estivesse procurando alguma coisa lá dentro, Fábio percebe e se sente um pouco nervoso e agiliza as bebidas. Faz os drinks e leva para a sala duas taças com bebidas, entrega na mão do outro.  

Fábio disse rindo – Quero muito te ver tendo teu primeiro porre.

 – Quero, aliás preciso beber alguma coisa, pelo menos hoje. As coisas com minha namorada só piram, em casa as coisas também não andam boas. Minha família e a família dela querem a qualquer custo nos casar, mas sabe cara? – deu uma pausa e como já estava com sua bebida, deu um gole um pouco longo, depois retoma – não sei se a amo o suficiente, não sei se quero aquela vida para mim, de tanta opressão, obrigações. Sei lá, parece que ninguém vive, é como se tivemos a obrigação de provar para os irmãos que somos santos, ou estamos na fé e ninguém – olho firme para Fábio – ninguém leva vida de merda nenhuma, estamos no fim das contas fo-di-dos, todos nós.

 – Deixa o teu pastor te pegar – disse rindo enquanto se levantava do sofá, foi até a janeira, retoma – não sei exatamente o que tens passados, não sou evangélico, mas imagino como deve ser a cobrança, bom, sou gay não? Não irei trazer uma mulher para casa, não terei uma esposa para mostrar para meus familiares fodidos, qualquer desvio na rota já chama a atenção. No fundo, sabe cara, todos nós queremos ser felizes, mas é difícil sair dessa norma padrão, desviar. 

 – Sinto um pouco isso - disse aproximando da janela também, já era noite, a escuridão e aquela conversa iam até seu mais íntimo medo. Repousou a cabeça na costa do amigo e ficou um momento sem dizer nada. 

Fábio colocou música para tocar e se sentou, encheu seu copo e de Tiago. 

 – Quero ser um homem livre – disse Tiago abruptamente, sem nenhum aviso, mas ficava claro que era seu real desejo.

 – Acho que tu deves ser um homem livre. Tu és um cara muito especial e bacana.

– Pelo que estou vendo, terei que dormir contigo, posso? Essas bebidas estão me deixando tonto e já estou falando coisas que nem queria

 – Claro, pode sim – disse pensando em tudo que estava acontecendo – e fala o que tiveres que falar, que sentes que tem que falar.

 – Talvez eu queira te beijar, talvez eu sempre quisesse te beijar. Eu te desejo, te desejo muito e só de pensar nisso já ficou excitado.

Tiago bebeu bravamente. Como se um leão desperto em seu peito abrisse a boca e comesse toda a carne do medo. Copo após copo, e ninguém disse mais nada. Afogavam-se. Mergulhavam um no outro. Tiago via na mata crespa do peito de Fábio, seu mar a ser vencido. Sua luta. Sentia um cheiro bom, como se com a noite chegasse uma ventania. Vencia o medo. Queria afogar suas dores. O Fábio lhe olhava estranhando. Perguntou depois se ele estava bem. E Tiago dizia que estava e bebia mais. Sentiu o cheiro daquele homem próximo de si. Tiago se aproximava cada vez mais. Então puxava o outro para mais próximo de si. Como se tivesse libertando uma fera. Até que ficaram tão próximos que suas boas já não tinham distância e suas línguas pareciam apenas uma. 


Marcos Samuel Costa



Comentários

  1. UAU! Muito bom teu texto. É o retrato fiel do drama de muitos que vivenciam a prisão, opressão do preconceito, principalmente da parte da própria família.

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