geografia desocupada


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 – Não é de ninguém a culpa, entenda.
 – Há um culpado
 – A culpa é tua então.
 – Minha? Minha não. Foi tu que desistiu. Que teve medo. Fugiste para longe e nunca soube voltar. Enquanto eu enfrentava minhas dores.
 – E tu achas que eu não sofria?
 – Não. Tu foi celebrar a grande festa de tua vida em outro lugar. Não sabes sofrer. Eu sofri.
 – Tem escola que ensina? Não sabes do abismo que caí. De quantos dias levei para olhar o sol. Levantar da cama. Quantas agulhas me furaram. Quantos remédios tomei. Exames que fui submetido para descobrirem uma doença que nem existia, minha dor era você. Desculpa!
 – Desculpa?
 – Sim. O que te trouxe aqui?
 – O ódio.
 – O ódio e amor são a mesma coisa.
 – Não sei.
 – A fronteira entre ambos é tão curta. Mas isso mostra que o amor ainda vive ai em ti.
 – Amor por ti? Eu te mataria e ainda viveria feliz.
 – Mentia.
 – Não duvides, olhe aqui, olha minha arma.
 – Então me mate, já não sei o que é viver há tanto tempo.
 – Falas porquê tu sabes que eu não faria. Mas eu farei.
 – Faça.
 – Aqui está toda a dor, toda a carne. Nossa ceia.
 – Esse mar não mexe com tuas lembranças?
 – As lembranças ruins que tu deixaste? Do teu corpo em simbiose com o meu? Lembro daquele dia, que tu me trouxeste de bicicleta aqui, que na beira da praia um boto morto era arrastado pelas ondas. Mas ignoramos. Tu tiraste minhas roupas e passou tua língua em toda a geografia desocupada do meu desejo.
 – Antônio?
 – Foi, foi isso. Naquele dia eu estava estudando para minha prova de filosofia, mas deixei tudo de lado e vim te ver. Tu integral, íntimo e tão gigantesco para mim. Eras essencial. Meu maior pecado.
 – Antônio?
 – Mas tudo acabou. Tu fugiste, teve medo de tua família. Foste embora. Atravessou sozinho as águas que nós iriamos enfrentar juntos.
 – Antônio?
 – O que foi?
 – A água já bate em tua barriga. É nossa hora de atravessar.
 – Contigo não vou para lugar algum, Pedro.
 – Naquele dia... ah aquele dia. Cheguei em casa depois de nosso gozo. Meu pai me esperava com uma arma na mão e minha mãe com uma bíblia. Minha irmã chorava muito e meu irmão me olhava como um olhar estranho. Foi o olhar de meu miúdo que me acabou de verdade. Aquele irmão que eu tanto amava e cuidava, me olhou com tanto julgamento. Meu pai não disse que me mataria. Dizia que te mataria, que acabaria com tua vida, que iria tirar o emprego de teu pai, que ia deixar tua casa na miséria. Antônio? Eu te amei mais do que a mim mesmo, apanhei tanto naquele dia. Todo o ódio do homem recaiu sobre mim, as mãos pesadas do meu pai dessoravam minha intimidade. Fui por te ama.
 – Por que não me contou nada? Eu não acredito em ti.
 – Não deixe o ódio vencer. Eu não podia. Chegar perto de ti seria arriscado de demais.
 – Nem uma mensagem no celular?
 – Não podia.
 – Nem um bilhete?
 – Entenda... foi por amor. Ou atravessamos agora ou nunca mais teremos outra oportunidade.
 – Não confio em ti, mas vou. Nada mais importa.
 – Venha por amor.
 – É por amor.
 – Me der suas mãos.
 – Aqui estão elas.
 – És um homem tão lindo.
 – Sonhei contigo todas as noites, sem nenhuma quotidiano diferente disso. Todos os dias a imagem e o desejo.    
 – Eu sonhei contigo durante esses cinco anos. Todos os dias, Antônio.
 – O milagre de Cristo foi na praia. Estamos aqui, Pedro e Antônio, vivendo novamente o amor.
 – O vento é a voz dele.
 – Nas suas pisaduras fui sarado, o castigo que estava sobre mim ele carregou.
 – Mergulhe.
 – Eu te amo.
 – Mergulhe, ainda hoje estaremos no paraíso. Viveremos todos os dias o amor. O jardim da vida. O cálice. A cruz.
 – É verdade, estaremos unidos a matéria, a criação, nossos corpos de água dentro da água, integralidade.
 – Unos.


Marcos Samuel Costa - prosa 2018

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