Rio Laranjeira - marcos samuel costa

 




Rio Laranjeira

 


Ainda eram meus primeiros meses como psicólogo daquela unidade. Mas estava me adaptando rápido e fiz amizade com a equipe. A coordenadora considerava por eu ser homem, era mais indicado que eu fosse para as visitas na zona rural e ribeirinha. E eu não me importava, era garantida uma folga e ficar um dia fora do prédio, com suas muitas questões burocráticas para serem resolvidas, que apesar de ter seu lado bom, era cansativo, muitos relatórios, evoluções e encaminhamentos.

Saímos cedo ainda da cidade numa voadeira. O horizonte ainda estava escurecido e o dia timidamente estava nascendo. Eu, Luna e Jack erámos a equipe, e nos acompanhando estão alguns policiais militares para qualquer situação que pudesse acontecer. A viagem era longa, demoramos muito até chegar na primeira casa que teria atendimento. E de uma comunidade para outra era ainda mais distante. Fora que a presença dos policiais deixava as pessoas bastante apreensivas, tornava difícil conquistar a confiança delas. E o que era para ser bom, o atendimento domiciliar, se tornava exaustivo.

Lura era mais próxima, conversávamos sobre tudo e sua companhia na viagem deixavam as coisas mais tranquilas, ela era enfermeira, e já estava naquela unidade por quase três anos. Conhecia bastante a dinâmica dos atendimentos, e se recusava fielmente a comer qualquer coisa que lhe ofereciam em viagem, demorei para entender o motivo, mas depois de uma infecção intestinal, passei a me recusar a comer qualquer coisa nas visitas. Jack era também enfermeira e tinha um ar de muito séria. E era de fato, mas ao mesmo tempo sua presença era agradável, sempre ponderava suas palavras e atitudes.

Na voadeira comemos algumas frutas e tomamos água, sabíamos que a manhã seria muito cheia. Gostava de ficar olhando as margens dos rios por onde passava, muitos deles já conhecia. Viajava quando criança com meu pai por aqueles rios, tinha muitas lembranças de tudo aquilo. Conhecia os cursas, os rios, as comunidades.

A manhã toda foi de muito trabalho e no início da tarde tínhamos uma última visita. E essa foi a mais custosa, não achávamos a casa do idoso que estava agendado. Navegamos muito no Rio Laranjeira o procurando e nada, até que alguém nos informou onde poderíamos encontrar. Isso depois de perguntar em muitos portos e todos dizerem apenas que não sabiam. Paramos no porto de um pequeno comércio e nos informamos, o dono disse que quem procurávamos morava dentro da mata, disse a mediação, que deveríamos seguir reto que o encontraríamos, tínhamos uma única certeza, era dentro da mata que ele morava.

A maré estava cheia e eu era o único homem da equipe, fora isso, era nativo daquela região, o mais indicado para ir procurar. Desci com bastante dificuldade do lado do comércio que era de madeira e construído em cima da várzea. Um PM me acompanhou. Caminhei na várzea alagada pela maré alta, caminhamos, caminhamos e o beira do rio ficava cada vez mais distante.

Eu caminhava com uma certeza facilidade por cima das juçaras tombadas, mas o PM estava ficando cada vez mais distante de mim, tinha dificuldade de andar naquela área e a bota dele não ajudava, lisa demais, eu estava descalço e ia me equilibrando. E então comecei a chamar pelo nome do senhor que procurávamos. A mata estava ficando fechada, alguém distante respondeu. Mas era oposto da direção que eu andava e tinha a plena certeza que não mudei de rumo em nenhum momento, tinha certeza, o PM ainda vinha caminhando, mesmo distante eu estava no seu campo de visão.

O PM não falava nada e seu rosto vermelho mostrava o quanto ele estava com raiva, era um rapaz muito jovem, branco e com o braço esquerdo todo tatuado, seus olhos eram verdes e seu o rosto redondo. Pelo que entendi era recém ingressante na polícia militar, havia passado no último exame de admissão. E esse silêncio entre nós não estava ajudando em nada.

Gritei novamente e a voz respondeu, eu então resolvi gritar que eu tinha vindo fazer uma visita, que eu era psicólogo, ele continuava respondendo e nós andando. Então vi algo que poderia ser uma cabana e possivelmente a casa do senhor Manoel. A cabana era feita de juçara e era da mesma cor de quase tudo naquela mata, o telhado era de palha-seca. Cheguei perto e ele estava sentado dentro de sua cabana. Era muito pequena, ele não podia ficar em pé ali dentro, comia com as mãos um peixe cozido que estava com um cheiro muito forte. Seu Manoel disse ter ouvido nosso chamado, mas pensava que era os bebuns que ficavam tomando pinga no comércio do Januário.

E eu disse que entendia sim. Falei mecanicamente o que estava fazendo ali, qual era meu objetivo e expliquei a companhia daquele jovem policial, minha atenção era para aquela situação de moradia. Para aquela moradia tão ressequida pelo tempo, pela chuva e pelos ventos.

Seu Manoel brincou que não poderia nos convidar para entrar e tirar nossos pés da água, a cabana não aguentaria nosso peso, e realmente não. Sabíamos que não. Fiz meu trabalho, me senti tão incapaz diante daquilo, mas guardei para mim tudo, não deixei transparecer qualquer espanto. Não poderia. Seu Manoel me explicou que não poderia sair dali, tinha arrendado o terreno com aquela ponta de açaí de um jovem senhor de Belém e teria que o pagar no fim do ano, estava ligado a terra como se fosse um trabalho análogo a escravidão. Disse também que queria muito fazer outra moradia, mas não tinha força, mas dizia ser consciente que aquela não iria aguentar as grandes chuvas que estavam vindo, ele nos disse que os ovos dos aruás estavam sendo encontrados em lugares muito altos, fora isso, os socós estavam cantando muito longe na madrugada, indícios de um inverno muito forte.

Apontou para cima e disse que tinha medo dos galhos da Embaubeira caírem em cima da sua casa com os ventos fortes, e que até tinha subido para cortar os galhos, mas suas forças eram poucos. Não conseguiu cortar tudo. E de fato, a árvore apresentava muitas marcas de cortes, e por cima de sua casa, os galhos mais altos ficavam balançando. Falou que acordava às cinco da manhã todos os dias e ia apanhar açaí, estava velho e cansado.

Eu lhe disse que precisávamos ir voltando, o restante da equipe estava nos esperando na voadeira, ele agradeceu a visita, sorriu meio sínico, fiquei sem entender. Caminhamos de volta, eu e aquele PM, tentei refazer o mesmo trajeto fielmente, e era crente que conseguiria. Porém, o policial parecia ainda mais calado. Na volta o caminho parecia mais distante, estranhamente, perguntei para ele se ele achava que tínhamos nos perdido, ele ficou calado e apenas me seguia, olhei para trás e vi seus olhos, estavam brancos e fundos, fiquei assustado, mas sabia que deveria manter a calma e achar a beira do rio, com ou sem aquele rapaz, a vida dele já estava perdida, tinha que lutar pela minha. Corri sem olhar para trás.




Marcos Samuel Costa escritor, poeta. Nascido na cidade de Ponta de Pedras / Ilha de Marajó / Pará,

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