O vendedor, ar seco - conto de marcos samuel costa
O vendedor, ar seco
Cláudio chegou do trabalho exausto. Passou mais de oito horas em pé cortando frutas e carregando caixas, olhava sempre para o relógio. Custava a passar as horas. Daniel estava em casa lhe aguardando. Quando ele chegou tomou seu banho e os dois lancharam. Ainda pensaram em ir para a academia, mas lembraram do compromisso que teriam a tarde. Era uma semana especial, Daniel depois de muita luta tinha entregado a dissertação de mestrado sobre corpos e movimentos, estava feliz.
Antes de saírem avisaram
Roberto que estavam saindo e marcaram o encontro em frente ao supermercado da
Rua Augusto Correa. Arrumaram-se rápido e caminharam até a parada no sentido
oposto à sua casa, no caminho encontraram com Roberto. Ficaram algum tempo na
parada até passar o ônibus. Subiram e pegaram um trânsito ruim. O fim de tarde estava
abafado. Quente. Seco.
Cláudio era quem estava
mais cansado, logo começou a cochilar no ombro do seu namorado. Daniel ficou
atento as coisas que via pela janela. Distrações. Pensava que estava muito próximo
do seu retorno a sua cidade de origem, depois da missão cumprida, mas já amava
a cidade grande. Amava Belém.
A noite lentamente ia
tomando o cenário. Escurecendo. E tornando o calor suportável.
Quando já estavam na
Doca, um vendedor entrou no ônibus. Apenas com um salto, adentrou. O motorista
ainda tentou fechar a porta traseira, mas ele foi mais rápido. A fome gritava. Uma
onça negra adentrando a escuridão. Era um rapaz alto e forte, seus braços eram
musculosos, sua pele negra e o cabelo com corte estranho. Estava com uma caixa
de bombons nas mãos, Boa tarde pessoal, desculpa incomodar a viagem de vocês,
mas sou mais um jovem desempregado tentando levar comida para casa – mas sua
voz dissipou entre o fim da tarde e os desafios que todas aquelas pessoas, que
como ele, estavam batalhando muito para suportar a inflação altíssima.
Vendo que ninguém lhe deu
atenção, mudou a fala, Eu estava até essa semana preso, sai faz poucos dias da
prisão, não me orgulho não, roupar e matar não me trouxe nada de bom, por isso
que prefiro pedir ajuda de vocês do que ter que fazer alguma coisa errada.
Outra vez ninguém deu atenção. Era quase seis horas da noite, muitos estavam
saindo dos seus trabalhos exaustos. Daniel estava sentado numa cadeira na
frente, sozinho, com fone de ouvidos, e o casal de amigos logo atrás.
Roberto não estava atento
ao movimento do ônibus. Tinham saído aquela tarde para um encontro de leitores
no centro da cidade, um amigo deles que escreve, iria participar do evento. Tudo
nele estava quieto. Conciso em sua própria dor. Logo pela manhã tinha cumprido
seu último dia de trabalho na empresa, a carta de demissão já tinha lhe deixado
ciente. Ficaria sem dinheiro, com contas e desempregado. Isso lhe atingia.
Arranhava profundamente. Sentia-se cansado de batalhar tanto e não sentir que
chegava em algum lugar. Poderia apenas
ser um instante de desesperanças.
O vendedor ficou ainda
mais irritado, queria dinheiro, precisava cheirar ou fumar uma massa, estava
seco, o medo de roubar era grande, não queria ser detido outra vez, mas sua
mente e seu corpo pediam enlouquecidamente, pensava: “preciso de um tapa, só,
estou seco”. E estava, tudo dentro de si já estava morrendo. Morrendo a tanto
tempo que nem sabia mais onde tudo começava, se com aquele pai que chegava
bêbado e tentava lhe estuprar, ele e a irmã, ou com a mãe que um belo dia foi
encontrava morta dentro do Canal do Barreiro, ou a criação na casa dos tios,
onde era maltratado. Como um cão que espera apenas o resto e as comidas
estragadas. Não aceitava que era gay, ou até mesmo bissexual, que poderia
gostar de dar o cu, mesmo sentido algo remexer dentro de si quando vias os
caras sem camisa nas bocas, ou quando dormia na casa de algum irmão, e era
necessário dividir o único colchão.
Fazia sexo com muitas
mulheres, pensava nos caras, e penetrava elas. Era a regra. Sua regra, ninguém
precisava saber. Estava morto. Nunca amou nenhuma delas. Em qualquer pretexto
era violento. Queria que fossem logo embora, mas algumas ficavam ou voltavam.
Marlon fugia. Estava o tempo inteiro se escondendo. Nem para ele era muito
cedo, se escondia-se da vida, das pessoas ou dos seus desejos.
Quando Roberto lhe
ignorou, uma raiva lhe tomou, de impulso, tirou os fones do ouvido do outro, com
violência, gritou, Sim, porra, custa dar atenção, caralho. O que tu pensas que
és? Seu merdinha, filho da puta. Roberto ficou calado, manteve o controle, mas
Marlon não, estava tudo ficando confuso em sua mente. Claramente percebeu que o
rapaz magro e com roupas diferentes era gay, e como sentia raiva dos gays, os
gays e suas vidas que para ele parecia tão imundas, sentia raiva muita raiva,
queria matar quantos gays pudesse, Imagina se tu fosses rico, hein seu
merdinha, imagina. Deu um tapa no outro. Foi quando outros caras vieram para
cima dele.
Não pensou muito, tirou a
arma do cós e começou a atirar em todas aquelas pessoas, estava seco, muito
seco, completamente morto por dentro. Morto.
Marcos Samuel Costa, é poeta e ficcionista, autor dos livros: No próximo verão (ed. Folheando, 2021), Os abismos (Ed. Folheando, 2021) e do romance Dentro de um peixe (ed. Folheando, 2019) e do romance O cheiros dos homens (Prêmio Dalcidio Jurandir).
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