Aleluia - poema de Marcos Samuel Costa

 

Aleluia 

Ainda éramos muito crianças quando 
Théo manifestou na igreja 
a noite é uma boca que engole os sonhos
a igreja é um deserto que queima os pés
e sem sandálias certas somos capazes 
de morrer, mas qual número se calça?

Crianças não sabem escolher 
calçados
nem decidir qual espírito deve 
lhe acompanhar 
naquela noite o medo me acompanhou 
como o lençol que deito sobre mim 
ao dormir

Théo ia com a avó dele 
e eu com minha mãe para a igreja
foi estranho, éramos muito pequenos
eu tinha apenas 11 anos e acho que ele no máximo 
13 anos, 
o pastor colocou a mão na cabeça dele 
e num instante a revelação: 
“Quando a mãe desse menino estava grávida dele (pausa)
Alguém fez uma macumba para ela o perder (pausa) 
mas alguém com muita fé na família o salvou
com suas orações (pausa)
ele deveria ter nascido morto, irmãos, 
deveria ter nascido morto, 
posso ouvir um Glória a Deus? (pausa)
(todos gritavam glória a Deus, Aleluia), 
(continuou) só que a Pomba-gira passou a lhe acompanhar
ele é acompanhando por um espírito das trevas”
e gritava sem parar sem parar sem parar:
“Se manifesta Pomba-gira do mal
Se manifesta Pomba-gira do mal
Se manifesta Pomba-gira do mal”

Meu amigo começou a gritar
como se pedisse socorro
como se tivesse sendo machucado,
mas ninguém percebeu
que ele estava sendo machucado 
o pastor segurava pelos cabelos dele e puxava 
dizia que alguém incorporado 
não sentia dor
mas meu amigo sentia dor, 
eu poderia sentir sua dor

uma dor tão profunda quanto 
a maldade daquelas pessoas
tão profunda quanto os abismos 
que lhes habitam o peito

meu amigo gritava com medo
mas ninguém reconhecia
a sua voz, 
nunca mais ninguém reconheceria 
daquele dia em diante tudo que ele passou a falar
diziam ser a voz das trevas 
a voz da Pomba-gira
até hoje quando vou me deitar 
posso sentir os pés do pastor chutando meu amigo
dizendo que alguém incorporado 
não sente dor, 
mas se até hoje eu ainda a sinto...

Marcos Samuel Costa