Águas escuras - marcos samuel costa

 



Lauro estava trabalhando em um transatlântico havia seis meses e, desde que começou a trabalhar, colocou em sua cabeça que esse trabalho não deve ser por muito tempo, que o quanto antes precisa mudar, que precisa se firmar em outro lugar. Viver em alto-mar é difícil, muitos dias navegando, atendendo pessoas ricas e cheias de não-me-toque e exigências terríveis.

Lauro atua como cabeleireiro e maquiador dessas pessoas ricas; chegou a cuidar dos cabelos de uma princesa escocesa durante uma viagem pelo litoral do Rio de Janeiro, de cabelos de ministras, de pessoas importantes, dos deputados enrustidos que sempre acabavam chupando seu pau depois do serviço. Reparavam o volume em sua roupa e começavam a passar o cotovelo “sem querer”, a fazer perguntas mais e mais invasivas. No entanto, sempre deixavam um agrado.

O importante eram os agrados que ficavam; isso é que tornava esse trabalho suportável, pensava Lauro sempre que se via diante de um surto de ansiedade nas longas travessias. As águas verdes, azuladas, cinzas do mar o acalmavam. Eram tantos andares, tanta coisa para fazer. Distraía-se com o tráfico de drogas que acontecia nas dependências mais reservadas do transatlântico.

Mas mesmo o mar, as drogas, os agrados, o que permanecia e o que se despedia constantemente pareciam tão vazios quanto ele mesmo por dentro. Não adiantava muita coisa vagar.

Nos últimos meses, Lauro vinha enfrentando muitas dificuldades para dormir. Ficava em seu corpo a impressão de que o dia não passou ou de que ele não o viveu. Era sempre manhã. Manhãs e mais manhãs, como se nada começasse e terminasse. Comprou de um colega, veterano no trabalho, uns comprimidos para dormir. Todas as noites dormia com zolpidem.

Lauro sabia que eles foram comprados numa viagem ao Panamá e que seu colega havia estocado. Agora os vendia por valores maiores, e ele se arrependeu de não ter feito o mesmo. No entanto, não há nada o que fazer. Comprou de Camilo uma caixa e experimentou; porém, tomou junto com um trago de uísque. Não demorou, e seu corpo foi relaxando, relaxando, e tudo ficou leve.

Então, todas as noites passou a fazer isso: os comprimidos estrangeiros para dormir e uísque. O principal efeito era apagá-lo. Seu quarto era pequeno, ficava no andar mais baixo, junto com vários outros quartos de funcionários. Mas o seu, apesar de muito pequeno, era individual. Havia quartos maiores, mas era necessário dividir com alguém.

Lauro sabia que, na manhã seguinte, iriam aportar em Belém. Ficariam num imenso complexo portuário em uma ilha chamada Outeiro, que era ligada à cidade de Belém por pontes. Era tudo que sabia. O transatlântico em que trabalhava serviria como leito de hotel para várias pessoas importantes ligadas aos governos mundiais. E sabia também que cuidaria do cabelo de muitas mulheres ricas, dos deputados que iriam chupar seu pau, maquiar pessoas que, apesar da boa maquiagem, são profundamente feias e tristes.

Em Belém os rios pareciam com o mar, mas suas águas eram escuras, marrons. Alguém lhe disse que eram águas barrentas, cheia de barro e argila, águas que desciam desde o Chile e rasgavam o Norte do Brasil. Águas escuras.

Cuidar desses cabelos e dessas pessoas era extremamente tedioso. Cuidar daquelas mulheres era desgastante: elas mal o olhavam, agiam como se sua presença não fosse sentida. Logo ele, um homem alto e tão bonito, com os olhos quase cinzas e madeixas de um loiro natural, herdadas de um possível avô alemão que se mudou para o Sul. Justo sua presença, que sempre foi percebida em todos os lugares.

No entanto, não abriria mão desse trabalho; foi suado o conseguir. Seus planos eram, em breve, mudar para a Europa, trabalhar com cuidado de cabelos das personas da alta moda.

Em sua agenda da semana estavam os cabelos de duas ministras e de uma chefe de governo. Mas, entre um trabalho e outro, olhava sua conta no Grindr. Antes de chegar em Belém e abrir o aplicativo, sabia que encontraria rapazes diferentes dos que se relacionava em sua região; isso lhe causou ânimo, desejo e fetiche.

O perfil “C/local agora” lhe mandou mensagem. Conversaram um pouco e trocaram fotos. As fotos do rapaz eram bastante sensuais, muitos nudes. Porém, nem foi isso que lhe chamou mais atenção: foram as características indígenas dele. Mas o rapaz lhe disse que não era indígena, mas nasceu e cresceu em Belém.

Mas isso não importa, pensou Lauro; o importante seria viver essa aventura. O rapaz mandou a localização e não ficava longe de onde estava; sentiu algum receio. Ainda assim resolveu isso: conhecer a cidade e sua noite em uma cama nativa.

Saiu e foi ao encontro do rapaz; a noite foi breve, dormiu sem remédios e uísque na cama alhures.

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