3 poemas sobre o pai - marcos samuel costa

 



Insanidade do polvo marinho

 
 
Não conhecia a palavra
insanidade
não no seu sentido real
como alguém perdia a sanidade
e poderia de uma
hora para outra
perder o controle de tudo
 
o pai estava agora insano
o médico disse que uma demência
avançava descontroladamente
por seu corpo
por seus gestos
e ele morria
não morria seu corpo físico
morria sua mente
primeiro
 
era como se todo estado
insanidade
começasse com gestos
pequenos
 
todos os dias ele pedia
para ir para casa
mas estávamos em casa
 
ele gritava durante as manhãs
e todas as roupas
pareciam de fogo em
seu corpo
lhe queimavam
 
preferia a nudez
de todas as coisas
 
 


 
Uma mão escreve na parede
 
 

Era domingo
eu minha mãe e meu pai
almoçávamos juntos
a doença já havia
se alastrado por todos nós
 
meu pai levanta
e num gesto tão
estranho
seu corpo pede
o controle
 
seu corpo não se segura
nada se segura
tudo desaba
 
tenho que olhar
e ser forte
agora ele está no
chão da cozinha
todo feito cocô
 
agora ele está no chão
da cozinha
como se tivesse abrindo
com as próprias mãos
buracos
 
seus dedos sangram
seus ossos começam
a se mostrar
 
um buraco se estabelece
na nossa frente
minha mãe tem
as mãos no rosto
e seu rosto tem as lágrimas
 
eu tenho um completo vazio
e muito medo
não sei para quem pedir
socorro
 
socorro eu estou sofrendo
pelo sofrimento
presenciado
 
a noite sonho que visito
a casa da minha avó
mas na casa não mora mais
ninguém
foi vendida
 
estamos juntos perante
a pequena venda de doces
da minha avó
eu e o silêncio
 
vamos até a cozinha
vários buracos estão
sendo abertos por
mãos invisíveis
 
a noite sonho com
tantas formas de ferir
 


 
Boas-novas
 
 
Pai saiu de canoa
no seu retorno disse
para minha mãe
que uma velha conhecida
tinha falado com ele
no caminho
 
que ela estava sentada
na beira do igarapé
e falou seu nome
 
meu pai disse ser
dona Isabel
mãe disse que essa
mulher já tinha morrido
há muitos anos
 
meu pai disse ter falado
com ela naquela manhã
 
os espíritos estavam
nos lembrando
como são sensíveis
as divisões entre
nossos mundos
 
talvez a mente
do meu pai já não
morasse junto conosco
aos poucos seus olhos
estavam se abrindo
para aquilo
 
o esquecimento trazia
suas aparições
em contornos reais
 
em rostos conhecidos
mas mortos
em vozes familiares
mas silenciadas pelo
lodo do tempo
 
as folhas descem
secas junto com as
águas
 
os peixes sem memória
algum voltam
outra vez para lugar
algum
 
ilesos da caça e da pesca
seus predadores
padecem da fome
 
meu pai diz que sentiu
medo e alegria
em encontrar a velha
amiga
 
desce com as folhas
tudo que pertence
a sua memória
tudo que formava
o que ele era
 
ele entre pela
porta da cozinha
e anuncia sua verdade:
ele está morrendo. 
 

 

  Marcos Samuel Costa é poeta, romancista e contista, nasceu em 1994 em Ponta de Pedras, Ilha de Marajó (Pará). É de origem ribeirinha, gay e afrodescendente. Graduou-se em Serviço Social na UFPA, licenciatura em História (Unilins), mestrando em Antropologia PPGA-UFPA. Sua obra inclui poemas, contos, romances e literatura infantil. Foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2021 e em 2023. Além disso, venceu o Prêmio Delcídio Jurandir 2019 e o Prêmio Uirapuru de literatura 2021. Jurado do Prêmio Sesc de Literatura em 2021. Semifinalista do Prêmio Oceanos em 2024 com o livro "Os desertos".

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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