Ausência - Marcos Samuel Costa

 



Ausência 


Ao som de Chet Baker & Paul Bley - Diane (1985)


Antes de mais nada é necessário dizer que o meu coração dói pois doer é uma das suas funções é uma das maneiras mais incessantes que garantem que a vida mesmo cambaleando seja a nossa vida a nossa forma de ser e está no mundo e faz morada para os pesadelos constantes pesadelos onde tudo sangra infinitamente e pernas são quebradas motos se chocam em acidentes corpos perdem a vida pesadelos onde desço para um rio profundo demais com animais perigosos demais e não consigo sobreviver morrer dentro de um pesadelo é cruel tão cruel quanto o que sinto agora quanto a dor que vai tomando meus braços forçando meus punhos mãos dedos a parar de escrever a parar de trazer a colher a boca a ensaboar meu corpo a cuidar dos mínimos detalhes da vida limpar os ouvidos pentear os cabelos limpar as unhas aparar os pelos da axila depilar as partes íntimas a entender que para um bom acordo ortográfico para um bom texto é necessário conhecer profundamente a língua e eu brigo constantemente com a língua não sei quando usar as vírgulas me desfazer dos pontos sinais e dicionários cenários onde tudo se alinha com qualidade e tranquilidade mas a dor sempre é maior que qualquer certeza levantar da cama foi difícil tateei as paredes abri as janelas coloquei as frutas em um prato raso de cor azul em cima da mesa coloquei comida para os gatos e apenas isso qualquer outra coisa seria demais não tomo banho retorno  para cama nela caio como se tivesse duzentos quilos e uma força magnética que me puxasse para baixo para as profundezas minha cabeça gira sinto tontura vontade de vomitar de chorar de gritar de morrer de tomar toda a caixa dos antidepressivos apenas de uma vez e tudo se tornar silêncio apenas silêncio sem nenhuma voz sem nenhum penso que é necessário dizer sobre as coisas que tomam outras formas dos amigos que virão ausência dos amigos que partem das amizades que se desfazem como um girassol no fim da vida que vai caindo aos poucos e tomando a forma da morte da seca do que se vai com o vento forte da tempestade penso nos girassóis silvestres que nascem em campos sem donos sem cercas sem qualquer responsabilidade de produtividade e ainda assim morrem a liberdade é falsa nada é verdadeiramente real e o que é real nos torna irreal abstrações teria que dizer sobre todas as formas de dor que me tomam essa manhã dos músculos que doem por uma dor psicossomática de uma cabeça que vira sem nenhum motivo de um sono pesado que ainda faz parte de uma medicação tomada via injetável na emergência psiquiátrica teria que dizer das tantas vezes que a vontade de morrer foi maior da que de viver que sumir sempre é meu maior desejo queria recomeçar a vida em outro país aprender outra língua mas sei a minha condição de latino e que não seria bem-vindo em nenhum outro lugar sei da cor da minha pele dos meus ancestrais dos meus fenótipos genótipos e de toda geopolítica que domina esse mundo presta a desaparecer talvez eu desapareça primeiro olho para as caixas de medicamentos e penso e se e se eu tomasse todos e se tudo isso tivesse fim mas não consigo ir até lá ter nenhum deles na minha mão muito menos levar para minha boca o dia corre não sinto vontade de comer nada parecer ficar bem no meu estômago ou invés de saciar a fome o que como abre uma fenda para a tristeza e lá ela se instala como dona e proprietária tirando tudo do lugar mudando tudo se apossando do espaço que nunca lhe foi legítimo abro outras janelas agora não dessa casa não dessa moradia real abro as janelas que me transportam aos delírios sinto que sobem pelos meus pés um limoeiro que floresce sobre minha pele as flores da laranjeira que é preciso ser parte da terra que como me faço ácido preciso da terra como meu controle me torno mais amargo que aquele caroço de limão que mastigamos na massa do bolo já assado já servido do bolo que fica no centro da mesa junto com talheres pires xícaras e uma família ausente sozinho tenho que morder a solidão os caroços e entender que o tempo se desfaz que tudo rui tudo é ruínas no futuro e algumas ruínas são o presente e moram no passado sem nenhuma esperança que tudo volto a ser como era antes lanço para fora de mim essas mágoas que parecem nodos que parecem pedra mas não adianta elas parecem voltar como os pensamentos indesejáveis


Versão 02


Ausência 



Ao som de Chet Baker & Paul Bley - Diane (1985)



Antes de mais nada, é necessário dizer que o meu coração dói pois doer é uma das suas funções. É uma das maneiras mais incessantes que garantem que a vida, mesmo cambaleando, seja a nossa vida, a nossa forma de ser e estar no mundo e fazer morada para os pesadelos, constantes pesadelos em que tudo sangra infinitamente e pernas são quebradas, motos se chocam em acidentes, corpos perdem a vida. Pesadelos em que desço para um rio profundo demais, com animais perigosos demais e não consigo sobreviver. Morrer dentro de um pesadelo é cruel, tão cruel quanto o que sinto agora, quanto a dor que vai tomando meus braços, forçando meus punhos, mãos, dedos a parar de escrever, a parar de trazer a colher à boca, a ensaboar meu corpo, a cuidar dos mínimos detalhes da vida como, limpar os ouvidos, pentear os cabelos, limpar as unhas, aparar os pelos das axilas, depilar as partes íntimas, a entender que para um bom acordo ortográfico para um bom texto é necessário conhecer profundamente a língua e eu brigo constantemente com a língua. Não sei quando usar as vírgulas, me desfazer dos pontos, sinais e dicionários, cenários onde tudo se alinha com qualidade e tranquilidade, mas a dor sempre é maior que qualquer certeza, Levantar da cama foi difícil! Tateei as paredes, abri as janelas, coloquei as frutas em um prato raso, de cor azul, em cima da mesa. Coloquei comida para os gatos e apenas isso. Qualquer outra coisa seria demais! Não tomei banho! Retornei para a cama. Nela caí como se tivesse duzentos quilos e uma força magnética que me puxasse para baixo, para as profundezas. Minha cabeça gira. Sinto tontura, vontade de vomitar, de chorar, de gritar, de morrer, de tomar toda a caixa dos antidepressivos apenas de uma vez e tudo se tornar silêncio, apenas silêncio, sem nenhuma voz, sem nenhum som. Penso que é necessário dizer sobre as coisas que tomam outras formas, dos amigos que virão, ausência dos amigos que partem, das amizades que se desfazem como um girassol no fim da vida que vai caindo aos poucos e tomando a forma da morte, da seca, do que se vai com o vento forte da tempestade. Penso nos girassóis silvestres que nascem em campos sem donos, sem cercas, sem qualquer responsabilidade de produtividade e, ainda assim, morrem! A liberdade é falsa! Nada é verdadeiramente real e o que é real nos torna irreais abstrações. Teria que dizer sobre todas as formas de dor que me tomam essa manhã, dos músculos que doem por uma dor psicossomática de uma cabeça que vira sem nenhum motivo, de um sono pesado que ainda faz parte de uma medicação tomada via injetável na emergência psiquiátrica. Teria que dizer das tantas vezes que a vontade de morrer foi maior da que de viver, que sumir sempre é meu maior desejo. Queria recomeçar a vida em outro país, aprender outra língua, mas sei a minha condição de latino e que não seria bem-vindo em nenhum outro lugar. Sei da cor da minha pele, dos meus ancestrais, dos meus fenótipos, genótipos e de toda geopolítica que domina esse mundo prestes a desaparecer. Talvez eu desapareça primeiro! Olho para as caixas de medicamentos e penso: _E se e se eu tomasse todos? E se tudo isso tivesse fim? Mas não consigo ir até lá, ter nenhum deles na minha mão, muito menos levar para minha boca. O dia corre. Não sinto vontade de comer. Nada parece ficar bem no meu estômago ou invés de saciar a fome o que como abre uma fenda para a tristeza e lá ela se instala como dona e proprietária, tirando tudo do lugar, mudando tudo, se apossando do espaço que nunca lhe foi legítimo. Abro outras janelas, agora não dessa casa, não dessa moradia real. Abro as janelas que me transportam aos delírios. Sinto que sobem pelos meus pés um limoeiro que floresce sobre minha pele. As flores da laranjeira que é preciso ser parte da terra que, como me faço ácido preciso da terra como meu controle. Me torno mais amargo que aquele caroço de limão que mastigamos na massa do bolo já assado, já servido, do bolo que fica no centro da mesa junto com talheres, pires, xícaras e uma família ausente. Sozinho tenho que morder a solidão, os caroços, e entender que o tempo se desfaz, que tudo rui. Tudo é ruínas no futuro e algumas ruínas são o presente e moram no passado sem nenhuma esperança, que tudo volta a ser como era antes. Lanço para fora de mim essas mágoas que parecem nódulos que parecem pedra. Mas não adianta! Elas parecem voltar como os pensamentos indesejáveis


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