04 mini contos de marcos samuel costa

 



Glorioso
 

 

À noite Lucas saiu de dentro de si. Derrubou o muro de medo que fazia perante ele e as coisas lá fora. Em seu processo de metamorfose, tornou-se quase-pássaro, quase-bicha, cercado por ares nunca tocado antes. De semideus lhe chamaram, faltava-lhe apenas a glória a si, rainha. Mas isso não importava, tinha asas, tinha os ares. Voava, um ser que divergia de outros seres como nós. Não era mais e nem menos. Era ele. Nuvem chuvosa. Terra a esperar o toque das chuvas. Tudo isso era ele, uma ilusão, o perfeito caminhando para o impuro. Mas se sabia que a ruína viria. E nele a luz apagou. Cortaram suas asas e passaram a lhe chamar de bichinha.

 

  

Cegos então caiam na imensidão do amor

 

Sentaram-se à beira do rio, se deram as mãos, os outros órgãos do corpo também se uniram nesse sufrágio. Para Joel, o respirar e o pulmão de Caio. Não só isso, cada pensamento. Mas ainda era muito pouco. Decidiram repartir entre si toda a felicidade e as pedras submersas do Rio Guamá. O outrora se desfazia. Com a união, passavam a ser um do outro, não mais solitários. As horas correm muito de depressa, cortam a visão dos olhos, cegos então caiam na imensidão do amor. O amor era gigantesco, do tamanho do ímpio. Era a hora. Uma língua que passava por sobre a pele úmida. Queria outra flor sendo queimada no ar. Celebração e encontro. Nas mãos outro asteroide. Eram tão jovens. O tempo é curto demais, se preocupam com o amor. Tão efêmero, chegando próximo a um porre de catuaba. Um salto imenso por cima da realidade. Amor. No outro dia, estavam em aplicativos de sexo gay. O amor jovem.

 

 

 

Bruno me beija

 

Abriram-se várias portas, mas nenhuma delas levava a qualquer lugar, era uma espécie de fuga. Mentalidade obscurecida pelas noites. Porém, cheia de vida, mas como? Como pode haver luz e escuridão assim tão juntas? E as portas? Sim, elas, eram tantas, inumeráveis e inomináveis, eram fugas. Queria aquele batom iluminando seus lábios, mas ao mesmo tempo não. Em seu rosto o desejo da semelhança, ser mais um garoto dentro da normalidade dos fatos. Amarrada certeza de medo. Algo que lembrasse o masculino dos atos. A imagem e semelhança de um pai – criação masculina do princípio. Claro que seus lábios ficaram lindos com um vermelho forte. Ou não? Um rosa? Em seu pequeno quarto passava dias ensaiando como andar duro igual os homens de casa, a madeira firme que amarrava nas pernas. Não por querer, era obrigação. O batom nunca chegava aos seus lábios, mas era o que queria. Pedro tinha poucos amigos, aliás, um único. Que juntos cresciam em solidão e esvaziamento. Numa tarde qualquer ele recebe a visita de seu amigo Bruno. Mas algo de luminoso havia entre eles. Toques estranhos e olhares profundos. Como no dia em que Bruno foi para sua casa e deitaram juntos na cama, assim simples, sem camisa. E hoje, Bruno deitou e colocou a cabeça em sua barriga, a conversa ficou curta, um fogo crescia volumoso. Entre as pernas? Vontade de rasgar todas as roupas e beijar, “Bruno, acho que eu..., aliás, deixa pra lá”, “O que tu ias dizer Pedro, nem sei como te falar isso”, “Fala, cara, pode falar, agora que tu começaste, fala”, “Me beija”.

 

No abismo

 

A idade praticamente a mesma. A areia úmida da praia. Útero que trazia vida. Houve promessas anteriores de não repetir aquele tipo de presepada, mas como cumpri-las? Dizer não ao amor da carne? Arrancar pétala a pétala toda força do corpo? Esquecer-se de si e do outro naquela noite de fantasia e dor? Andaram juntos outra vez, como naquele passado cheio de promessas felizes, sonhos possíveis e palavras que buscam a vaga ideia de eternidade, palavras de para sempre juntos, “sempre te amarei”. Ambos os rostos maduros. A idade veio. Fez-se casas. Moradas para todas as solidões. Derrubaram as árvores. Ceifaram os campos. Ratos roíam todo o tempo. Perfídia em cada olhar. Finitude estragando os peitos. Bichos envenenados. Uma leve dor levou-lhes para longe. Uma lágrima corria dum olho para o outro. De face em face. Rasgando mágoas. Afagando passados que outrora afogaram-lhes. Voltavam depois de tantos anos a submergir daquele distanciamento-que-tanto-doía. Não podiam mais acreditar em nada. Porém, acreditavam em tudo. Mãos que buscavam outras mãos, o corpo próximo do outro corpo. Fatal, logo suas bocas se encontravam, acendiam chamas vivas, caiam juntos outra vez no abismo que é o amor.    



Marcos Samuel Costa é escritor, poeta e editor. Nascido na cidade de Ponta de Pedras / Ilha de Marajó-Pará, mora atualmente entre as cidades de Belém do Pará e Ponta de Pedras. Tem três romances publicados “Dentro de um peixe” (editora Folheando), “O Cheiros dos Homens” (Prêmio Dalcídio Jurandir -IOEPA/2020), "Inflama" (e-book, Amazon, 2023), o livro de contos “Sol forte da pele” (editora Folheando, Prêmio Uirapuru de literatura 2022) e alguns livros de poesia, entre eles: “No próximo verão” (editora Folheando – finalista do Prêmio Mix de Literatura 2021), “Os abismos” (editora Folheando). Edita a Revista Variações e organiza o prêmio voltado para literatura LGBTQIAP+ com o mesmo nome.

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