No domingo fez ainda mais sol

(Elza Lima)

 

O domingo fez ainda mais sol

 

No dia trinta de abril, mês passado, completei dezesseis anos. Todo meu corpo tem mudado, os sentimentos andam confusos... Meu pai pediu uma pizza por telefone. Perguntou qual sabor eu queria, pedi-lhe metade portuguesa e metade romana. Eu comemoraria com dois amigos próximos, meu pai, minha mãe e meu irmão Gael.

Depois dos parabéns e de comermos, fiquei sentado na frente da minha casa com meus amigos, Lucas e o Joel, meu irmão ficou dentro de casa mexendo no celular dele, era um garoto bonito que conversava com várias garotas. Meus amigos tinham minha idade também, falamos em garotas, sexo, anime e basquete. Foi nessa noite que o Menezes apareceu, ele era colega de trabalho do meu pai, também policial. Trouxe cervejas e ficou bebendo com o pai. Sem a mãe ver, pai me deixou pegar uma cerveja para mim e para os meninos. Foi meu pai quem chamou ele. Eram bastante amigos, já tinha visto eles juntos antes.

Cada um dava um gole e ria. A cerveja não tinha um gosto definido. Parecia ruim, mas era bom por ser cerveja, por ser algo que era proibido em nossa idade. No fundo sempre achei que mãe também sabia. Mas ela não fala nada, talvez não visse problema nessa iniciação. Escutei eles conversando uma vez sobre isso, que o pior mesmo é beber escondido, e muito mais quando é oferecido por pessoas mal-intencionadas. Mas foi aquela cerveja e ficamos rindo de tudo. Com dezesseis anos parece que somos capazes de tudo e nada.

Menezes me cumprimentou, deu um abraço apertado e me desejou feliz aniversário, não tinha nada demais no que ele fez naquela noite, talvez o abraço que foi muito intenso, mas não pensei em nada no momento. Mas foi gostoso aqueles segundos colados ao corpo dele, mas também estranho. Bom e ruim. Parece a cerveja. Eu já conversava com uma garota da escola, trocamos um beijo durante os jogos internos, erámos como se fossemos namorados. Mas existia algo ausente entre nós. A união dos nossos corpos não acendia essa mesma intensidade que fora abraçar aquele homem por alguns segundos.

Era diferente, enquanto a namorada do Lucas se sentava na perna dele e viviam grudados o tempo todo, eu e Lara mal nos tocávamos, mal falamos direito. Era rude nosso beijo. Algo cruel. Mas continuávamos porque era importante na escola estar namorando. Talvez por isso. Estava tudo bastante confuso. Não sabia se gostava de homem, nunca tinha tentado algo com algum homem. Porém, eu gostava do cheiro do corpo do Joel, adorava olhar a boca do Lucas. Sonhava com coisas confusas a noite com eles, com os corpos deles.

Depois da noite do meu aniversário e desse primeiro contato com Menezes, passei a ter a impressão dele estar em todos os lugares. Quando eu ia para a escola de manhã, sempre via ele perto da escola, na padaria, a noite na quadra de basquete ele aparecia, sempre sorria para mim, me passava uma confiança tão grande com aquele sorriso, sentia como se dissesse “somos amigos”. Ainda ensaiei chamar ele de tio, mas parecia que tinha lhe ofendido, sua cara foi a pior.

Estava um sábado de bobeira em casa e pai chegou do trabalho, me disse que Menezes tinha mudado para nosso bairro. Aquela informação me assustou. Ele realmente estava cada vez mais perto, perto de tudo. Pai continuou, disse que ele achou uma casa legal, maior e com espaço para o cachorro dele. E me convidou: “quer ir lá ajudar a carregar a mudança? Vou chamar teu irmão também”. Gael tinha quatorze anos, pai não o deixava bicar a cerveja como já deixava eu bicar, mas escondido eu deixava ele provar a minha cerveja, a única que pai deixava eu tomar. Meu irmão é totalmente diferente de mim, quanto eu sou calmo, meu irmão é mais agitado. Gosto de coisas práticas, não gosto de ficar trabalhando com hipóteses. Era como um trato entre nós guardar segredos. Senti que meu pai queria mesmo que tivéssemos confiança um no outro.

A casa nova do Menezes ficava uma rua depois da minha. A casa era bonita. Ele estava lá na frente, com muitas caixas e moveis, e claro, com cerveja na mão. Menezes olhou para todos, falou com todos, mas para mim ele oferecia um sorriso cheio de ternura, um olhar tão intenso que parecia entrar no meu corpo, me causava um calafrio. Não sei se o desejava ou não sabia o que era tudo aquilo. Carregamos suas coisas para dentro. Caixas e mais caixas de papelão. Eu e Gael carregávamos as caixas mais leves, pai e Menezes os moveis pesados. Mas os quatro ajudaram a levar a geladeira para dentro, ela era muito grande, de duas portas. Nessa noite foi a primeira vez que vi o pastor-alemão dele, o Thor, ele mesmo me disse o nome do cachorro, era tão grande e bonito. Ficou solto dentro da casa, era um cachorro bastante dócil, eu e mano ficamos brincando com ele. Meu pai e o Menezes, depois que colocamos tudo para dentro e a mesa de centro estava no local ideal, eles começaram a beber, a cerveja foi pedida no delivery, assim como a pizza, conversavam sobre o trabalho, falam de algum lugar que foi tomado por bandidos, ruas violentas, um colega de trabalho que tinha sido traído pela esposa, esse tipo de coisa. Mas suas vozes foram se perdendo da minha atenção.

Passei a perceber com mais nitidez a presença do Menezes em todos os lugares, e isso me assustou, porém, era bom também. Eu poderia até sentir medo do que eu sentia, não sabia como era ser gay ou não, sabia que aquilo tudo me deixava confuso. Não era impressão minha, ele estava tentando alguma coisa. Mas não queria acreditar que ele pudesse ter algum interesse por mim, era estranho pensar assim. Pai falou uma vez para a mãe que Menezes estava solteiro e não encontrava uma mulher para lhe fazer companhia, mas era bastante namorador. Eu não comentava sobre isso com meus amigos, poderia parecer estranho, iam saber que tenho algum tipo de atração estranha por homens.

 

***

 

Menezes passou a frequentar mais nossa casa e ter a confiança dos meus pais. Dizia que passava os fins de semana no interior, numa cidade próxima. Na casa de uma namorada. Passei a ter ciúmes dele. Mesmo sem motivo. E eu passei a lhe olhar da mesma maneira que ele me olhava. Coloquei meus dois olhos dentro dos olhos dele.

Nas madrugadas, quando Gael já estava dormindo passei a me permitir a assistir pornô, que agora pornô gay, sexo entre homens. Adorava ver os peitos com pelo dos homens, o sexo profundo, os órgãos sexuais. Um incêndio iniciava. Tudo era combustão no meu corpo.

Eu passei a imaginar o peito do Menezes, como deveria ser o seu pau, grande, ou muito grande? Imaginava como poderia ser beijar sua boca. Naquele momento ainda não sabia o que era se apaixonar, mas eu estava apaixonado por aquele homem. Nunca ficamos de fato sozinhos, apesar de ele sempre estar em todos os lugares, seus olhos estarem em tudo. Menezes era um homem alto, com cabelo baixo, bastante volumoso de corpo, mas não exatamente definido. As tatuagens do braço dele me deixavam excitados. Eu era um garoto magrelo, cabelos encaracolados, com uma altura maior que a média, dos meus colegas eu era o mais alto. Não deixava de forma alguma aparecer nada disso que estava sentindo ou desejando. Ninguém poderia imaginar que o filho mais velho do Pacheco poderia ser gay. Eu forçava ainda mais o namoro com a Lara e era terrível. Cheguei a ter a fazer piadinhas com um garoto da escola que diziam que era gay. Foi para me proteger, mas fiquei chamando-o das piores coisas junto com meus colegas.

No corredor da escola eu parecia gigante, minha voz saia alta, eu ria de tudo com os outros garotos. Fazia piadinhas das pessoas. Sentia que era necessário me colocar entre os mais fortes para não sofrer. Foi quase no fim daquele ano letivo que começaram os boatos que o Joel era gay. Alguém tinha visto ele beijando o Malaquias do terceiro ano no fim dos blocos de aula do ensino médio. Eu e o Lucas conversamos com ele, falamos no início da conversa algo sobre acabar com essas conversinhas e ele ficar bem com a namorada dele. Joel ficou calado. Falávamos e nos mexíamos tanto, era raiva misturada com alguma coisa a mais, que demoramos para olhar para o rosto do Joel. Fui o primeiro a perceber ele estava chorando, parecia tão profundo aquilo que ele transparência no rosto. Fez-me ficar triste também. Lucas disse “não chora, amigo. Vamos acabar com essa história”. Joel nos olhou com tanta incerteza, com tanta dúvida. Eu tive que dizer: “cara, o que está acontecendo? Tu podes falar de uma vez? Fala, por favor, fala logo”. Ele disse que era tudo verdade. Não soubemos o que fazer, falamos alguma coisa sobre a amizade ser maior, e era verdade.

Demorei para entender tudo isso, que pessoas poderiam ser qualquer coisa. Ainda senti alguma raiva. Mas depois entendi que era rancor, por não ser eu, por eu não ter coragem de dizer que talvez eu queira também saber como é beijar um homem. Joel passou uns dias calado, ficamos também calado. Ele para um canto e nós para outros. Mas sabia que em algum momento isso iria parar. Eu precisava deixar de lado esse rancor.

Lucas simplesmente não falou nada e eu entendi que era melhor não falar nada também. Jogamos como sempre basquete na quadra do Centro e formos na pracinha dos namorados tomar uma batida de frutas com aveia. Conversamos normal. Apesar de tudo ter mudado, nada mudou.

 

***

 

Terminamos o ano letivo bem, nós três passamos em tudo e cada um foi passar as férias para algum lugar. Viajei com os meus pais, mas por conta do trabalho do meu pai, geralmente íamos no fim de semana para algum lugar e voltávamos. Nessa época Menezes já estava morando com a namorada dele do interior, viviam juntos. E nisso formos passar um fim de semana entre famílias. Foi a primeira vez que vi Menezes de sunga. Ele era um homem grande, bonito, parecia sempre bronzeado, os cabelos sempre arrumado e os braços tão grande. Não conseguia parar de olhar para a barriga dele. Sentia um desejo tão grande. Tinha que o tempo todo ficar escondendo minha ereção. Meu irmão ficava mais atento a tudo. Não era mais tão distraído e já paquerava garotas.

Meu irmão me acordou a noite, estávamos num hotel no litoral, dividíamos o quarto. Ele falou sobre uma garota que tinha marcado com ele cedo para se verem, sair para tomar alguma coisa. Pela altura e corpo, ele parecia mesmo ter dezoito anos, mas era um garoto e precisava de mim para o ajudar. Formos. A noite estava calma, muitas pessoas na orla da praia, o vento vinha frio do mar. Deixei-o com a menina e lhe emprestei um dinheiro.

Fiquei por ali caminhando. Pensei que apesar de eu ser maior e ter aquela tentativa de namoro com a Lara, eu nunca quis de fato sair com uma menina, ou precisei ir a um encontro a noite. Eu estava aquém aquilo. Pensava no Menezes e como ele deveria ser sem roupa. Sonhava a noite com ele e acordava com a cueca molhada. Mas estava decidido, teria que beijar um cara para saber como é. Joel disse que estava transando com frequência pois usava um aplicativo de encontros e sexo, colocou a data de nascimento errada e estava saindo com muitos caras mais velho. Eu quis perguntar qual é, mas o que diria para ele. Não, pensei melhor, não seria por meio de um app de sexo que iria beijar um cara pela primeira vez.

O domingo fez ainda mais sol. A água azul do mar batia com violência na areia. Tomamos muito banho. Fiquei de sunga também. Todos os homens daquela viagem estavam assim. Meu pai olhou e riu, disse algo sobre eu querer com certeza impressionar alguma garota. Dei de volta um riso besta. Menezes como sempre estava presente em tudo com seus olhares. Quando ele me viu de sunga olhou toda a extensão do meu corpo como se percorrer um mapa. E eu olhava no fundo dos olhos dele. Queria que ele soubesse que o desejava.

No retorno das aulas chamei o Joel em casa. Ele até perguntou se o Lucas iria também, mas disse que não, que queria conversar com ele. Joel veio, pai ainda não tinha chegado do trabalho e a mãe estava fazendo alguma coisa na cozinha. Ficamos conversando nos fundos. Lá tinha uma mesa. Levei as cartas e jogamos. Joel queria saber o que eu queria conversar sem a presença do Lucas. Fiquei calado. Ele deve ter percebido meu mal está, como estava desconfortável.

Porém, sabia que era necessário dizer de uma vez. Fui como se estivesse desviando de espinhos, soltando as palavras, disse: “Cara, tipo, eu acho que estou gostando de homem. Eu sei que é estranho, mas bem antes daquela parada da gente saber do teu beijo com o Malaquias e tu nos conta que é gay. Eu já sabia que sentia alguma coisa”, ele ficou calmo, como se já tivesse tido essa conversa antes, disse: “Cara, mas tem a Lara, pensei que vocês se gostavam, que tu gostasse de mulher”, falei: “Também pensei, penso às vezes, mas me apaixonei pelo Menezes, aquele cara que trabalha com meu pai”, Joel: “Eu sei quem é. Um cara bem mais velho. Fiquei com caras mais velhos também”, disse: “Pois é, passamos um fim de semana no litoral, foi todo mundo de casa, a mulher dele, foi bom, estava muito divertido. Que na madrugada estava sem sono e meu irmão estava meio que num encontro estranho e eu estava encobertando ele. Nisso desci para rua. Menezes estava lá fora também. Estava fumando. Fiquei perto dele. Conversamos muitas coisas, ele perguntou se que queria fumar, eu disse que sim, foi ridículo, eu tossi, não sabia tragar. Ele sorria. Ele me convidou para caminhar na areia. Estava escuro, subimos um moro e ficamos sentado. Estava calmo, sem muito vento, sabe? Ele acendeu outro cigarro, me deu de novo, parecia que ele queria criar um ambiente em que fossemos iguais. Dois caras adultos”, Joel ficou me olhando, seus olhos pareciam algum mistério, jogou mais uma carta, eu estava quase para bater, armado já. Joel disse: “E aí?”, lhe falei: “Ficamos ali, dele deixou e me chamou. Eu deitei do lado dele. Não demorou e trocamos o primeiro beijo. Foi bom, muito bom, a boca dele era áspera, o barba feita arranhava meu rosto, era intenso, bom, ruim, queria mais. Estava muito escuro. Não víamos ninguém naquela área. Ele tirou minha roupa. E eu tirei a dele. Não sei como sabia que deveria passar a minha língua por todo o corpo dele, passei, passei em tudo, nos peitos, na barriga. E depois ele me puxou para si, chupou meu peito e usou tanto a língua que gemi, depois chupou meu pai, foi tão bom, eu tremia, gemia. Meu corpo todo parecia ter sido colocado numa tomada. E depois chupei o pau dele. Não transamos naquela noite... que tem uma coisa”, Joel estava visivelmente excitado e perguntou: “que coisa, caralho, porra mano, deve ter sido muito bom”, baixei a cabeça com vergonha, medo, mas orgulho também e entre risinhos lhe disse: “Estamos juntos até hoje. Meio que namorados. Tudo escondido, mas juntos. Tu és o primeiro a saber”.




Marcos Samuel Costa é escritor, poeta, jornalista e editor. Nascido na cidade de Ponta de Pedras na Ilha de Marajó, mas mora entre as cidades de Belém do Pará e Ponta de Pedras. Bacharel em Serviço Social pela UFPA e licenciatura em história na UNILINS. Atualmente edita Variações: revista de literatura contemporânea. Publicou o romance Dentro de um peixe que acaba de ganhar a 2 Edição pela Editora Folheando, o livro de poemas No próximo Verão (Editora Folheando 2021, Prêmio Literatura e Fechadura 2020) Os abismos (Editora Folheando 2022). Além disso, ganhou em 2019 o Prêmio Dalcídio Jurandir (IOEPA) com o romance homoafetivo: "O Cheiros dos homens" e o primeiro lugar no Prêmio Uirapuru de Literatura com o livro de contos "Sol forte na Pele" (Editora Folheando 2022).

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