Máquina do tempo - conto de Marcos Samuel Costa
máquina do tempo
Alguém apagou as luzes da casa, ouvi tu
chamar meu nome, Caio, vem aqui, e eu fui, estavas conversando com uma amiga
nossa, a Isa, eu vi tuas mãos tocando o peito dela, tua alteração, todo porre
que já apresentavas, teus excessos, os limites que eram quebrados, mas o melhor
foi tua voz, Vem Caio, vamos dar um beijo a três, eu parei na hora, o que
diria, não disse, só fui, as luzes estavam apagadas, o som estava alto na sala,
nossos amigos estariam, talvez, fazendo a mesma coisa nas outras partes da
casa, ou coisas mais excitantes, então eu fui, tu estavas de frente para a Isa,
começou o beijo, beijei vocês de lado. Um falso beijo. Mal tocava tua boca, mal
pude te sentir, não faço ideia de como é teu hálito, que gosto tem tua língua,
o encontro das nossas línguas.
Leandro tu eras o nosso sol. Foi no
aniversário da Mila que te reencontrei, depois dos anos de escola, depois de eu
ter passado algum tempo fora. Mudando de cidades e sonhos. Leandro tu ainda
eras o mesmo, não o aquele mesmo, porra, estava ainda mais bonito, estava com
um bigode bem feito, os lábios ainda mais carnudos, a pele preta, excitação,
profundidade. Leandro tu sempre foste tudo isso.
Muita cerveja, risos e músicas. Muita
alegria e felicidade. Todos tinham mudados, todos os meus amigos e minhas
amigas do tempo de escola tinham mudado. Eu mais do que todos mudei. Alguns
formados, alguns namorando, mas nenhum ainda tinha casado. Bebíamos entre psicólogos,
pedagogos, fisioterapeutas, jornalistas, professores e vagabundos, drogados
também. A noite não tivera nada de breve, vimos o amanhecer juntos. Mas antes
disso muitas coisas iam acontecendo. Ana foi a primeira que te beijou Leandro,
não sei qual foi o contexto, lembro quando estourou entre seus lábios, te
desejei ainda mais, Leandro, na época de escola tu foste um escroto comigo,
ficavas o tempo todo zoando com minha cara, me chamando de gayzinho,
fresquinho, ou do nada dizia, Ai mana.
Eu me aborrecia, te odiava, criei um desprezo por ti, no início ainda
respondia, tentei resistir, mas não adiantava, e nisso fui me afastando, não
tínhamos amizades nas redes sociais, mas não podia te esquecer, morávamos no
mesmo bairro e sempre que vinha visitar minha família, te via de relance, mas
nunca tão próximo para perceber como tu tinhas ficado tão bonito. Foi naquela época
que comecei afundar no abismo que hoje vivo.
Me sinto mal em escrever tudo isso, em
falar em voz alta nos corredores de casa todas essas palavras, dizer teu nome
em sussurros, passar horas da noite pensando em ti, no abraço que tu me deste
no escuro, no encontro dos nossos corpos, o teu corpo negro, magro, teu perfume
maravilhoso, estavas vestido tão bem naquela noite, sempre sendo o sol.
Confesso que não me acho interessante,
muito menos bonito, resisto a depressão por alguns anos, fui ao fim do poço,
voltei, mas minha autoestima é péssima, acredito que posso ter alguma coisa
boa, mas nunca sei como usar, sou meu pior inimigo, meu degradador maior. Mas
depois do beijo da Ana contigo, tudo se agitou, aos poucos os casais iam tomar
água ou ir ao banheiro e para lá se pegavam, trocavam beijos e carinho, imagino
que alguma promessa ou frases do tipo, Gosto muito do teu beijo, ou, Tu sempre
és tão carinhosa comigo.
Penso que tens recusa a mim, deve ter
teus motivos Leandro, não te julgo, alguém te colocou no lugar que hoje tu
estais, alfava, o centro, o mais cobiçado. Todos os meninos te querem, te pagam
as coisas, te compram roupas, pagam por tua atenção, mas eu nunca te paguei uma
água, será por isso que nunca olhaste para mim? Todos falam que tu comes o
Paulo por dinheiro, e a gente percebe que o Paulo age como se fosse algo a mais
para ti, isso não me ofende, não me machuca, nada, sabe Leandro, não julgo,
mesmo julgando, pois não aceito pagar para ter alguém comigo. Mas deixa eu te
contar, um amigo meu de Belém, certo ano em seu aniversário, contratou um
garoto de programa para transar, ele me disse como foi gostoso e como gozou
muitas vezes, o rapaz era padrão, jeitinho de heterossexual, bombado de academia e tinha o pau
grande. Ele pagou caro, mas gozou muitas vezes. Penso que seja isso que
aconteça contigo, apenas presta um serviço, tu não obrigas ninguém a te pagar,
tens um papel, Leandro, tu já tens um papel....
Leandro, lembro que tu sentaste do meu
lado e conversamos, falamos sobre faculdade, tu eras recém-formado em
administração, falaste seu TCC em tempo recorde e da boníssima apresentação,
falei da minha vida acadêmica, mas que penso que tu mal entendeste, te disse
que eu estava como aluno especial na Unicamp e que depois iria tentar o
mestrado, tu não deste importância, mas tudo bem. Leandro, tu eras o tempo
inteiro sedutor, em qualquer palavra ou gesto, em qualquer ação, seu jeito
brincalhão fez todo o rancor passar, mas nessa conversa não resisti, tive que
lhe dizer, Sabe cara, tu me traumatizaste muito no tempo de escola, me
avacalhava o tempo inteiro, me chama o tempo todo de gayzinho e isso foi
horrível para mim.
O álcool ajudou a formar as palavras,
em colocar para fora, não saberia dizer se foi o momento certo, mas falei,
ainda posso sentir tuas palavras daquela noite tão viva, Desculpa mano, nós
erámos moleques, não tínhamos noção das coisas, mas sabes que hoje tu és meu
camarada. Ele me pediu um abraço, mas não quis, Não gosto de abraçar assim, não
gosto de chegar perto de pessoas, e eu não estava mentido, no passar dos anos
passei a ter medo de proximidades, mas ainda assim teu abraço veio.
Alguém puxou a brincadeira de passar
bala de boca em boca, não sei se foi meu irmão que também estava na festa, ou
uma das meninas. Eu queria ter recebido a bala da tua boca Leandro, por dentro,
no fundo fiel do meu coração, mas não me movia, fiquei onde estava, passei a
bala para a Luci e ela para ti Leandro, e nisso começaram os gritos, Beija,
beija, beija, beija... e se vocês beijaram, e depois voltaram a beijar
novamente e a brincadeira continuou. Depois voltamos a dançar, Ana não gostou
daquilo, daquele beijo, nem eu, eu podia sentir o que Ana estava sentido. O dia
amanheceu e cada um foi para suas casas.
Mas os rumores continuaram, soube que
Ana e Luci queriam o mesmo cara, te queriam Leandro, o nosso sol, e eu também
queria, eu estava me apaixonando. Uma semana depois revi a galera em outra
festa, Leandro, tu chegaste com um rapaz grande, o Paulo, ele entre nós era o
que mais tinha dinheiro e status, trabalhava no próprio negócio e faturava bem,
rápido as línguas ferozes fofocaram que vocês dois estavam ficando, que Paulo
estava te bancando Leandro, que Paulo estava apaixonado por ti também, nosso
sol, nosso sol em sagitário, toda a sedução emanava de ti. Mas que sempre ganha
é quem tem mais grana, só Paulo será fodido pelo lindo pênis, Leandro.
Outra vez o encontro, outra vez os
amigos fizeram uma social e nos chamaram, muita cerveja, demasiadamente muita,
mas o que isso importa? O que importa se nosso dinheiro é gasto com bebidas e
drogas, com sexo e aventuras, cada um escolhe seus caminhos, sabe Leandro, nem
deveria te escrever outra vez, já deveria ter silenciado tua voz da minha
mente, o volume do teu corpo, apagado o teu cheiro da minha memória afetiva,
ter passado por cima de tudo, de ti especialmente.
O Fábio, meu irmão que estava conosco
nas festas, me contou hoje, só hoje, que quando foi pedido a pizza tu disse que
ias pagar, e quando a pizza chegou vocês dois foram buscar lá fora e pagar, e
que tu abriste tua carteira, tinham muitas notas de cinquenta, e tu disse, Estás
vendo esse dinheiro aqui? É tudo desses veados que eu fodo.
Marcos Samuel Costa. 2020
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