Quando os cavalos chegaram - conto de Marcos Samuel Costa
“He, the
trained spy, had walked in trap
For a
bogus guide, seduced by the old tricks.”
W. H.
Auden
Os dois cavalos cresciam
rapidamente. Ganharam peso, força e brilho nos pelos. Agilidade. Corriam no pequeno
campo improvisado. Os dois cavalos cresciam. Expandiam-se para a vida íntima de
todos. Comprá-los era um sonho antigo. Que germinava nele desde época que
Flávio era apenas um garoto.
Quando
pequeno ia com seu pai ver as corridas de cavalos marajoaras no bairro do
Mutirão. Aconteciam em dois momentos no ano, o primeiro dentro das comemorações
do aniversário de sua cidade e o outro, no período do verão alto. Gostava mais
do segundo, quando o sol das cinco da tarde ainda iluminava violentamente o
dia. O calor era grande, mas não precisavam se preocupar com as chuvas, e isso
lhe aliava. A imagem dos cavalos a correr mexia com seu coração. A poeira a ser
levantada pelas esporas dos cavalos e o desejo pervertido em imagens sensuais
do menino também. Parecia que a qualquer momento eles chegariam num estranho
ápice, seu coração acelerava, mas tudo era aparente. Lá mesmo morria. Pensava consigo:
“Um dia terei meus próprios cavalos e poderei disputar as corridas”.
Os caras que ganhavam, sejam eles quem
montavam ou os que eram os donos dos cavalos, gozavam de um grande prestígio na
cidade. Sendo seu pai um velho empregado da Sudam, não poderia nem sonhar em
gastar seu pouco dinheiro com criação de cavalos.
Mas Flávio
cresceu, teve condições de comprar seus cavalos, fazer seu pequeno cercado e
passou a cuidar bem deles. Gastava toda sua economia com neles, um investimento
quase em vão, mas não sentia assim, não via assim e muito menos pensava dessa
maneira. Um homem quando ama alguma coisa logo se torna um pouco tolo. Os
cavalos passaram a tomar conta de grande parte de sua vida e sentimentos.
Ele tinha
duas filhas pequenas. Duas garotinhas morenas e com seu semblante, olhos finos
e cabelos lisos, com idades próxima, Mimi com seis anos e Laurinha com quatro.
Sua mulher era professora, lecionava em casa mesmo, mas ganhava pouco. Ela era
de uma família que em algum momento do passado gozou de alguma fortuna, mas
hoje nada disso se manteve. Moravam nos fundos da casa de seus pais, um velho
casarão de dois andares e muitas janelas, a descascar a tinta pouco a pouco.
Marlene teve seu corpo transformado pela gravidez, ainda mais duas em seguida.
Tinha muitos sonhos, mas foram fincando para trás, mas nada a ver com cavalos.
Porém, seu objetivo maior se transformou, queria mesmo era a felicidade das
duas meninas. Ela continuou trabalhando muito e cuidando delas. Enquanto o
marido conseguia se manter viril e em forma. Lhe traia com muitas outras
mulheres. Ela sentia-se a cada mais rebaixada, porém a chegada dos dois cavalos
fora a gota final. Caiu numa total solidão. Ao longo do dia raramente via o marido.
Ele saia para trabalhar, comia e ia cuidar dos cavalos. O sítio improvisado era
distante e ela nunca podia ir, por conta das filhas, as meninas não poderiam
sair assim a qualquer momento, seja pelas chuvas, pelo sol forte ou pela distância.
***
Conheceram-se
ainda muito jovens, suas caras eram próximas. Ele era um moreno bonito e
galante. Ela também era bonita e atraente. O namoro começou escondido, depois
foram namorar de porta. Marlene pensava muito se seria feliz com esse homem,
desde o início vivia sendo traída, mas o amor que sentia foi mais forte. Acabou
se entregando a paixão e se casou. As meninas nasceram logo depois.
Tentou de
todas as maneiras mais uma vez entender e carregar todo esse peso. Os dois
cavalos passaram a significar seu fracasso total. Suportava calada. Adentrar os
escuros cômodos do seu coração e se conter, mas não conseguiu, os coices lhe
jogavam longe. Desta vez era diferente, sentia seu corpo caído em areia
movediça. Estava perdida. Sua família lhe cobrava atitude. Estavam cansados de
lhe ver abandonada. Prato rachado no fundo do armário. A mãe de Marlene sofria
calada também, sempre estava ao lado da filha, via se repetir esse cansado
filme de horror.
Até que teve
um dia que foi na casa de sua sogra conversar com a família dele, ela achava
que eles deveriam estarem cientes de tudo e para não lhes julgarem. Já tinha
comunicado a sua família a intensão de separação. Sua sogra morava perto, numa
casa que no passado também viveu seus dias de riqueza. Na frente da casa uma
grade velha, quebrada em vários lugares e enferrujando. Um grande cacto
plantado no vão da calçada. A tarde estava exaustivamente quente, um tempo
abafado e sem vento. Antes de entrar, mesmo sendo de casa, bateu palma na porta,
e esperou ser atendida. Algo tinha sido quebrado, e Marlene sentia que foi
primeiro nela. Estranhamente sentiu vontade de tocar num pontiagudo espinho que
se destacada dos outros, como se tivesse necessidade de sentir alguma outra dor
que lhe fizesse esquecer a que lhe doía por dentro, mas desistiu assim que foi
atendida pelos olhares de dona Márcia.
– Boa
tarde, dona Mili, bença?
– Deus te
abençoe filha.
– Vim
conversar com a senhora.
– Claro
minha filha, se sente. Vou pegar um café.
Marlene se manteve calada. A sogra em passos
lentos sumia para o que talvez fosse um abismo. Pouco depois voltou, trazia uma
pequena bandeja nas mãos e duas xicaras com café.
– Deveria
ter mandando tu entrar, evitava carregar coisas. Mas aqui tá um pouco menos quente.
– Verdade.
– Mas
diga, o que lhe traz aqui? Cadê as meninas?
– Estão em
casa. Eu vim conversar sobre seu filho e os dois cavalos. O Flávio vive para
esses dois bichos agora, compra a melhor ração, todos os remédios, leva no
veterinário, produtos de higiene e beleza para os bichos, enquanto eu e as
meninas não temos nada, sempre falta algo para uma, algo para outra, eu não sei
mais o que é ter um creme para pentear meus cabelos...
– Mas o
que é isso? Se sempre que você está falando do meu filho, sei qual é sua dor,
mas me respeite como mãe.
– Não
aguento mais, eu vou botar ele para fora de casa, que o diabo lhe parta – disse
com muita raiva.
– Se
resolvam para lá minha cara, casa ele tem para voltar, só digo isso. O que tu
quer com isso?
–
Separação – disse seca – quero ver como ele vai se virar sem mim.
– Alto lá
bonitona, olha como fala, melhor tu ir embora, vai se entender com teu marido
para lá, vá vá.
– Eu vou,
eu vou mesmo, passe bem, recado dado, para depois não virem me acusar.
– Você é
jovem, tem tudo para viver ainda, só o que digo.
Aquela
conversa lhe trouxe algum alívio, mas não o suficiente para voltar a se
esconder em seu quarto escuro de submissão e sofrimento. Estava certa do que
queria. Arrumou aos poucos sua alma para aquilo, foi tentando se firmar antes
de comunicar sua decisão. As brigas cessaram, ela também fazia pouca questão.
Fechou-se dentro de si. Flávio percebia alguma mudança, mas o amor pelos dois
cavalos era maior.
Até que teve
uma noite que ele chegou tarde, fedia fortemente a merda de cavalo e suor. Fez
procuração pelo jantar, ela lhe falou o que tinha e onde estava. Colocou as
meninas para dormir. Deixou-o sentar-se na mesa e comer.
– Hoje
passei a tarde cuidando dos cavalos. Estão tão fortes e bonitos, logo logo
estarão nas disputas, isso nos trará retorno.
– É mesmo?
– Sim,
querida.
– Você não
perguntou, mas eu conto... Laurinha teve febre hoje. As duas estão resfriadas.
Eu não lembro a última vez que você deu atenção e amor para suas filhas.
– Poxa
querida, já deu remédio para elas?
– Sim.
– Que bom,
amanhã vamos ao médico.
– Tudo
bem. Bom, a verdade eu estava te esperando...
– Para
quer? – cortou ele.
– Para lhe
comunicar a separação.
– O que
você está falando, meu bem?
– Isso
mesmo, separação.
Discutiram um
pouco. Ele saiu bravo e foi para a casa de sua mãe. Ela pegou o carro e saiu
também. Era uma noite seca e quente. Entrou na estrada em altíssima velocidade.
Olhava distraída para as cercas e os campos ao longo do caminho. Alguma coisa
mexia violentamente com ela. Olhou excitada para o lado, viu a arma do marido,
que minutos antes de sair pegou. Logo chegou na casa deles do sítio, cerca de
14 km da cidade. Desceu, sentiu seu corpo ainda mais pesado, caminhou como se a
gravidade tivesse aumentado, tremia um pouco, mas sentia na boca uma adrenalina
forte. Sabia atirar, tinha aprendido há dois anos. Caminhou até onde os cavalos
estavam. Preparou o gatilho e atirou nos cavalos. Os corpos deles tremiam e
eles gritavam de dor, para abreviar a morte ela voltou a disparar vários tiros.
Quando viu os dois corpos estirados no chão, corpos pesados e que pareciam
custar a morrer, pensou consigo: “Se meus sonhos tiveram que morrer, que morram
os sonhos de todos também”. Voltou para o carro e dirigiu até sua casa na
cidade, guardou a arma e dormiu em paz, como nunca mais tivera feito.
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