Intimas e intensas ondas - conto de Marcos Samuel Costa


Intimas e intensas ondas

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(imagem Google)


Verão de 2008. Sol forte. Ondas leves. Pele queimada. Dias ácidos. Na palma da mão cabia pelo menos um dia inteiro. Mais distante um pouco, os cálculos errados de uma conta antiga lhe cobrava algo. Memórias. Endereços. Alusões. Na fenda – entre os dias de sol e a tempestade interna. Reinado. A corda. Esse era o símbolo. Deus distante o bastante lhe ensinava algo. O pastor bem disse: “Meu filho, Paulo já dizia, quando se é menino, se age como menino, se pensa como menino, mas quando se é homem...”. Silêncio nas impressões geográficas e no coração do garoto. Na paisagem tão pequena era. No destino gigantesco? A idade era pouca. Rasa como qualquer uma de suas experiencias de vida. Sabia pouco de águas profundas. Beijos molhados. Pouco também conhecia da verdade de um corpo nu  carregando o próprio homem.  Perdia a cada rajada de vento o rosto, cheio de poeira. Da janela do ônibus via a recente cultura dos campos de arroz, que mais tarde seria a própria decadência dos povos que viviam naqueles arredores. Paisagens longas. Sofridas em seus olhos. Foi ainda na adolescência, em seus dezesseis anos de idade que as primeiras gotas melancólicas da vida lhe chegaram.

Seu passeio de verão. A única viagem que sua pobre família poderia lhe oferecer. Fim de semana em Soure. A organização era da igreja. Todos alojados na escola. Entre redes, excessos e entulhos. Saiu de sua cidade no fim da tarde. De barco iriam até Cachoeira do Arari  e de lá pegariam o ônibus.  O barco saiu no final duma tarde quente. Sobre a água quase cor de ouro, refletindo o por do sol, saía de dentro das desesperanças daquele garoto e seguia firme para zonas desconhecidas. O  transporte estava lotado. Mas ele achou um lugar para se alocar.

Ondas bravias. Bruno sofria. Não sabia descaminhar cacos do destino. Garoto inquieto. De boa estatura, bom peso, bom corpo, bom sorriso, bom caráter. Acreditava no país e manuseava revistinhas  pornôs. Mas sabia bem o que queria ver. Problemático, porém, não conseguia deter na mente, dentro de si alguns desejos e seleções. No meio da noite, quando a condução atravessava o escuro... e as horas buscavam  nascer o dia de dentro, e da melhor  maneira possível... seu pênis acordava nessas bermudas de garoto. Erguia- se e saía alucinadamente acordando os mundos secretos de todos os garotos. O barco ia parando e mais pessoas adentravam. Parte daquele passeio era coletivo. E outras, os garotos em seu tempo. Outras vezes eles entravam e imediatamente procuravam lugar para acomodar as sequencias da noite. O outro dia seria quente.

Mal o ônibus estacionou. Mal houve tempo para o café da manhã. Seguiram viagem. Ao meio dia chegaram em Soure. A pele um pouco mais queimada e as sobrancelhas arriadas. Uma vergonha que só aumentava. A cada parada para as travessias de balsa, as pessoas lanchavam. Comprovam algo,  ele apenas escondia as fomes triviais e os desejos mais loucos. Alguém saca ao seu lado um protetor solar e faz uso. Ele olha. O sol lhe queima. O rosto fica mais feio.
Ao chegar ao Alojamento adaptado, tudo lotado. Sem lugar para atar rede. Era uma ávida corrida contra o tempo, rapidamente tirou de sua mochila a rede e as cordas. Em toda a extensão da escola procurou um lugar para dormir. Acabou se amontoando entre várias cordas e tecidos. Calor humano intenso. Desconforto e temeridade. Mas esse não era todo o preço a ser pago. Ainda haveria celebração para ir durante boa parte da noite lá na igreja. Filas enormes para comer uma comida sempre ruim e mal servida. Banheiros lotados e alagados. Mas era verão. Sua única viagem. Único momento do ano que saía para passear. Os preços todos altos. Ele sentindo-se  obrigado a ser feliz. Era o preço.

Ondas calmas. No outro dia arrumaram todas as coisas para ir à praia do Pesqueiro. No pátio da escola passava uma lista para os interessados assinarem. Foi quando Bruno tomou em mãos o papel e fez seu registro. Viu dois garotos e uma garota que estava com ele na viagem, aproximou-se  deles:

 – Oi, vocês não vão para a praia?
 – Acho que sim – disse a menina
 – Não estou sabendo de nada – disse o menino mais forte.
 – Vão fretar uma Van – disse Bruno.

Foram juntos. Divertiram-se a tarde inteira, e a amizade consumando-se. Conversando iam conhecendo cada esconderijo, cada compartimento ligeiramente esquecido de propósito. Os três moravam em Belém. A menina chamava-se Leila, o rapaz mais magro, Luan e o mais forte Jefferson. Eram irmãos, mas como foram parar naquela viagem da igreja, perguntou Bruno. O avô deles morava numa das comunidades onde o barco parou para embarcar mais pessoas. Estavam de férias na casa do avô. O sol forte queimava suas as peles. O movimento da praia atraía os seus olhares. Mergulhavam nas piscinas naturais daquela praia. A água salgada tocava no coração do garoto. Sentiu que um deles trafegava com um olhar diferente, pois tinha um sorriso lindo e os olhos pequenos e amendoados. No fim da tarde regressaram. Veio a noite e Bruno saiu sozinho com ele. A noite sempre fora a amiga mais compreensível dos garotos que gostam de garotos. Isso eles sabiam. O mesmo lhe ofereceu chicletes e caminharam pelas ruas encantadoras de Soure. As casas com suas portas fechadas. A luz duma cidade badalada. Falavam em códigos que sabiam, a qualquer momento um deles iria pescar. Jefferson jogou a isca. Bruno mordeu.

Os dois garotos entenderam o que ambos queriam. Aos poucos foram se afastando do centro da cidade. Afastando-se dos olhares. Estavam indo para a distância. Esse fenômeno físico e espiritual. Romperam a menor distância entre dois corpos. Beijaram-se na boca. Ondas agitadas. Mar pesado. Águas fantásticas. Correntezas fortes  arrastavam. Eram levados para o fundo de um rio-útero. Existência. No fundo, submersos e respirando por meio de guelras. Bruno sentia pela primeira vez a horrível culpabilidade... tons e cheiros da palavra  pecado. Era na realidade um momento, um dos sonhos que tanto lhe cercou nas noites. Molhadas roupas. Amaram-se intensamente em suas distancias. Na corda do barco. No calafeto. No algodão misturado com a massa. Na função de impedir o naufrágio. Viveram intensamente os poucos dias que estiveram fundos. Acabava assim a segunda manhã. Cada um de volta em suas vidas. Jefferson ficou na casa do avô e Bruno seguiu viagem. Foi a última vez que se viram. Bruno demorou anos para esquecer aquele garoto. Mas mesmo que quisesse, o tempo lhe mostrava que seria quase impossível  guardá-lo apenas no coração. O para sempre fora em sua coloquialidade uma palavra bela, dura e intensamente imperfeita.
Por muitos anos seguidos desde aquele verão de 2008, Bruno passou a ter para si como referência de um bom namorado, alguém como Jefferson. Ele passou a significar. Mas muitos outros verão vieram. Outros caras. Ilusões. As prisões. Os desafios. As músicas que ouvia dentro do seu quarto no fone de ouvido. As lágrimas. A solidão. As paixões. Tudo passou. O tempo tinha que seguir. Os outros verões foram ficando cada vez mais quentes, mais breves, mais mudados. Houve um período que todo o sol não era capaz de lhe iluminar o peito. Foi tempestade. Era a saudade em qualquer praia que lhe batia na porta e cobrava as antigas dívidas.

Cresceu, terminou o ensino médio, entrou na UFRA. Passou a cursar Agronomia.  Afastou-se  de sua infância. Esqueceu partes dolorosas do seu passado. Agora homem, agia como homem, porém, como um homem que suporta o naufrágio de um navio transatlântico com as mãos, tendo a obrigação de salvar a vida dos outros e comprometer a sua. Crescia entorno de uma prisão. Colocada a todos os dias um novo tijolo e arguia mais alto os rumos de sua derrota. Sem amor. Sem a amizade de si mesmo.

Desde aquele verão de 2008 passaram mais de dez anos até aquela noite. Saindo ele da UFRA, foi para a A.V. Perimetral, pegou o ônibus, sentou-se. Guardou o celular na cintura. Estava cansado. Do seu lado uma cadeira vazia. E assim continuou. O ônibus continuou vazio por bastante tempo, já passando por trás do Bosque Rodrigues Alves, que um garoto sentou-se  ao seu lado. Ele não virou para olhar, estava distraído. Uma voz logo seguiu com o vento leve:

 – Bruno?!
 – Jefferson?


Marcos Samuel Costa - prosa 2018 

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